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Subnotificação e ausência do Censo impactam as políticas públicas para proteção da mulher

De acordo com especialistas, durante a pandemia, o isolamento social e a dificuldade em pedir socorro deixam mulheres mais vulneráveis à violência doméstica, agressores impunes e dados subnotificados

Equipe: Duda Garcia,
Maria Fernanda Machado e Regiane Barbosa

Em 2020, mais de 13 milhões de mulheres foram vítimas de violência doméstica no Brasil.  Este número, fornecido pelo Instituto em Pesquisa e Consultoria (Ipec), corresponde  aproximadamente, a toda a população da cidade de São Paulo (12,33 milhões de habitantes). A pesquisa demonstra que 15% das brasileiras com idade superior a 16 anos sofreram algum tipo de violência de gênero por parte de homens próximos a elas. Dividindo esse número pelo tempo decorrido do ano, isso seria o mesmo que dizer que, a cada minuto, 25 mulheres são agredidas em território brasileiro.  Este dado revela uma realidade cruel que, infelizmente, é bastante presente, e que tem sido agravada e invisibilizada durante a pandemia: a violência de gênero. 

Em geral, as desigualdades de gênero foram agravadas durante a pandemia do coronavírus, que impôs medidas restritivas para contenção do vírus como isolamento e o distanciamento social, a suspensão de atividades presenciais, trazendo novas dificuldades na luta contra a violência: a subnotificação dos casos e a dificuldade em pedir socorro.

Em abril de 2020, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) publicou a nota técnica “Violência Doméstica durante a Pandemia da Covid-19”, que revela que a dificuldade em sair de casa para denunciar agressores têm tornado vítimas cada vez mais reféns de seus parceiros. Embora o número de casos tenha aumentado, o número de denúncias tem caído drasticamente, expondo uma discrepância escancarada nos dados que são coletados pelos órgãos institucionais e não governamentais. 

Fonte: Ipec / Arte: Eduarda Garcia

Foto: Maria Fernanda Machado

Segundo a nota do FBSP, quando as estatísticas são comparadas com o ano de 2019, observa-se a redução do número de denúncias de violência contra a mulher atendidas pela Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180, canal que presta uma escuta e acolhida qualificada às mulheres em situação de violência em todo o país, com exceção dos estados do Mato Grosso e do Rio Grande do Sul, onde não houve redução. As quedas chegaram até 39,3% no estado do Pará, onde ocorreu o maior decréscimo. No total, 8.440 denúncias foram realizadas em março de 2019 no Brasil, e este número caiu para 7.714 no mesmo mês do ano seguinte - o primeiro mês de isolamento, apontando uma redução de 8,6% nas chamadas registradas. Enquanto isso, o número de feminicídios se manteve estável ou crescendo na maioria dos estados durante os mesmos períodos analisados. “Você consegue esconder a agressão, mas não consegue esconder o corpo. Por isso, o parâmetro do feminicídio é o principal indicador do aumento de números de violência de gênero”, argumenta Andreza Gomes, da Subsecretaria de Prevenção à Criminalidade, da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (SEJUSP), de Minas Gerais. 

Enquanto isso, o número de feminicídios se manteve estável ou crescendo na maioria dos estados durante os mesmos períodos analisados. “Você consegue esconder a agressão, mas não consegue esconder o corpo. Por isso, o parâmetro do feminicídio é o principal indicador do aumento de números de violência de gênero”, argumenta Andreza Gomes, da Subsecretaria de Prevenção à Criminalidade, da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (SEJUSP), de Minas Gerais.

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Para Larissa Mapa, integrante do Movimento Olga Benário, o principal  fator para estas discrepâncias nos dados é a dificuldade para a realização das denúncias, visto que o agressor se tornou muito mais presente dentro de casa e na vida das vítimas. Além disso, fatores socioeconômicos também são impeditivos para muitas mulheres tomarem o primeiro passo para denunciar a agressão ou mesmo saírem de casa, já que não possuem independência financeira para sustentarem, sozinhas, a família. “É preciso compreender a complexidade da sociedade em que vivemos. Sabemos que, em números, a maioria das mulheres vítimas de violência doméstica tem cor e classe social. E quando o Estado se nega a enfrentar o problema, vidas são perdidas, já que a violência doméstica tem um ciclo, que poderia ser minimizado através de políticas públicas”, apontou a militante. 

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Tendo em vista a dificuldade das mulheres para realizarem as denúncias sobre violência doméstica, além das estatísticas de feminicídio, outros parâmetros têm sido utilizados para compreender as discrepâncias dos registros oficiais. A nota técnica do FBSP destaca também a pesquisa no universo digital, por meio de análise dos dados das redes sociais sobre possíveis crimes de violência de gênero, que forneceram um panorama ainda pior. Foram recolhidos comentários de usuários das redes, que relatam, muitas vezes, casos de brigas e de violências envolvendo pessoas próximas. Dados de comentários de usuários em redes sociais fornecem evidências de que terceiros, principalmente vizinhos, muitas vezes notam casos de brigas e violência. A pesquisa no digital identificou, portanto, que houve um aumento em 431% de relatos de brigas de casal por vizinhos entre fevereiro e abril de 2020. Isto corrobora a tese de que há incremento da violência doméstica e familiar no período de quarentena necessário à contenção da pandemia da COVID-19, ainda que este crescimento não esteja sendo captado pelos registros oficiais de denúncias. 

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“Você consegue esconder a agressão, mas não consegue esconder o corpo. Por isso, o parâmetro do feminicídio é o principal indicador do aumento de números de violência de gênero” - Andreza Gomes, da Subsecretaria de Prevenção à Criminalidade, da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (SEJUSP), de Minas Gerais.

Fonte: FBSP /  Arte: Eduarda Garcia

Você consegue esconder a agressão, mas não consegue esconder o corpo. Por isso, o parâmetro do feminicídio é o principal indicador do aumento de números de violência de gênero.
Andreza Gomes, da Subsecretaria de Prevenção à Criminalidade, da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (SEJUSP), de Minas Gerais.

Andreza Gomes, subsecretária da SEJUSP/MG, afirma que a subnotificação de dados é um problema e que a ausência de um censo, que possa retratar o cenário do país, influencia as políticas públicas a serem realizadas para a proteção da mulher. “Os números de violência da mulher são embasados nos que são recolhidos nas delegacias, junto à polícia militar e nas redes de acesso e denúncia das mulheres". 

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Embora a violência de gênero não seja uma categoria registrada no Censo, a subsecretária destaca a importância dos dados disponibilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): "É fundamental porque dá um panorama das mulheres em cada município, cada bairro, cada região, como um todo e isso pra gente é muito significativo. Então a gente consegue ter uma leitura de quantas mulheres, qual o percentual por região, qual o nível de acesso à delegacia, isso é uma informação importante. Não ter o IBGE é um prejuízo para todas as políticas públicas, e inclusive as voltadas para as mulheres. É um grande desafio avançar com as políticas públicas, mas frente aos dados acessíveis, é importante que elas não recuem”, relatou.

 

Quem são as vítimas da violência doméstica?

Evandreia Nardone, moradora de Itapetininga-SP, ficou casada por sete anos e Maria* (alteramos o nome a pedido da fonte para preservar sua identidade), reside em Fortaleza - CE, e está casada há nove anos. As duas mulheres, separadas por mais de 3.000 km de distância, não se conhecem, mas compartilham histórias de relacionamentos abusivos, de superação e fé. O relato de violência sofrido pelas duas parece ser o mesmo: maridos que as agrediram física e psicologicamente. A primeira, foi mantida em cativeiro e sofreu várias ameaças de morte. A segunda, foi agredida diversas vezes, inclusive enquanto estava grávida da filha do casal. 

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Segundo o Painel de Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, órgão vinculado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), em 2020 foram registradas mais de 105 mil denúncias de violência contra a mulher nas plataformas do Ligue 180 e do Disque 100. Já no primeiro semestre de 2021, pouco mais de 40 mil casos foram registrados. Durante o ano passado e nos primeiros seis meses deste ano, o estado de São Paulo, onde reside Evandreia, aparece como o estado em que mais registrou denúncias de violência contra a mulher, como mostra o infográfico abaixo.

Muitos casos de violência doméstica ganham repercussão na mídia, outros são silenciados, como as próprias vítimas, oprimidas e muitas vezes mortas por seus agressores. Um dos casos recentes, noticiados pela imprensa, foi o da juíza Viviane Vieira do Amaral, 45, morta a facadas por seu ex-marido, o engenheiro Paulo José Arronenzi. O crime aconteceu na véspera do natal de 2020, na presença de suas três filhas, na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Em junho deste ano, a justiça aceitou a denúncia do Ministério Público contra o engenheiro Paulo José, que irá a júri popular e a expectativa é que o julgamento ocorra ainda este ano.

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Outros casos, porém, passam despercebidos até pelos próprios familiares das vítimas. Essa é a situação da Maria* que, por medo, preferiu negar à justiça as violências que vem sofrendo constantemente pelo marido. “Eu já fui chamada na delegacia da mulher por conta de denúncia anônima e neguei que sofria violência. Eu não tinha forças para enfrentar a situação”. Maria* confessa que sofre agressões físicas e psicológicas desde o início do casamento e precisa tomar medicamentos para enfrentar a crise de pânico que sofre. A medida fez com que seus patrões a afastasse do serviço e hoje, devido a pandemia do coronavírus, ela se encontra desempregada. 

Entre tantos casos terríveis de violência contra a mulher ocorrendo no país, mais um caso ganhou repercussão na mídia, no mês de julho: Pamella Gomes de Holanda sofreu agressões por parte de seu marido, Iverson Araújo, conhecido como DJ Ivis, enquanto carregava sua filha de apenas nove meses no colo, diante de sua mãe e de outro homem presente no local. O vídeo foi divulgado nas redes sociais de Pamella no último dia 11 de julho, e teve grande repercussão entre a população e os veículos de mídia, além do pronunciamento de repúdio de diversos artistas.

Fonte: MMFDH / Arte: Eduarda Garcia

Pamella Holanda (Foto: Reprodução / Instagram)

Vale destacar que, em apenas 24 horas de repercussão do caso, o DJ Ivis recebeu mais de 140 mil seguidores em sua página do Instagram. Este fato causou uma grande revolta em muitas pessoas que se pronunciaram sobre este aumento de seguidores, repudiando o apoio que estaria sendo dado a ele, e não à vítima, Pâmela. Iverson Araújo finalmente foi preso em 14 de julho e todos os seus pedidos de habeas corpus foram negados. Pamella contou que sofria agressões desde que estava grávida, mas que nunca buscou ajuda por medo de seu então marido e por dependência financeira. De acordo com dados divulgados pelo FBSP do ano de 2020, em 80% dos lares brasileiros onde houve uma tentativa de feminicídio com arma de fogo ou uma faca, as vítimas eram mães e, provavelmente, seus filhos presenciaram as cenas de agressões.

Pamella Holanda (Foto: Reprodução / Instagram)

O Censo é fundamental e é a única forma de informação sobre a situação de vida da população em cada um dos municípios e localidades do País. Ele tem a finalidade de identificar e revelar como vivem os brasileiros, produzindo informações imprescindíveis para a definição de políticas públicas. Mas embora a violência contra a mulher não seja uma categoria censitária no Censo Demográfico, o estudo Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil, publicado em 2019, pelo IBGE, revela informações importantes para análise das condições de vida das mulheres no País.

 

De acordo com o estudo, em 2019, as mulheres se dedicaram mais aos cuidados de pessoas ou afazeres domésticos, quase o dobro de tempo que os homens (21,4 horas contra 11,0 horas). Embora na Região Sudeste as mulheres dedicassem mais horas a estas atividades (22,1 horas), a maior desigualdade se encontrava no Nordeste, região onde Maria* mora com seu marido e filha. Maria* vende “quentinhas” para ajudar no sustento da família, que hoje sobrevive com a renda do que é comercializado. “Tenho muitas dívidas de água e luz, estamos desempregados. Faço quentinhas e meu marido sai pra tentar vender e com os altos custos e o pouco lucro só conseguimos pagar o que comemos”, lamentou.

“Muitas vezes ela fica porque tem filhos e ela vai para onde? Vai fazer o quê? Não é que ela goste de apanhar, mas ela vai pra debaixo da ponte com os filhos?” - Delegada Rose

Muitas vezes ela fica porque tem filhos e ela vai para onde? Vai fazer o quê? Não é que ela goste de apanhar, mas ela vai pra debaixo da ponte com os filhos?
Delegada Rose
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Quais são as violências contra a mulher?

A Lei Maria da Penha, que completou 15 anos no último 7 de agosto, surgiu com o intuito de criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. O documento carrega o nome de sua precursora, Maria da Penha Maia Fernandes. Nascida em Fortaleza - CE, ela é farmacêutica e mestre em Parasitologia em Análises Clínicas pela Universidade de São Paulo (USP). Sua história de violência doméstica reflete um quadro sistêmico do ato sofrido por muitas mulheres no Brasil, que atravessa todas as classes e posições sociais. 

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A Lei n. 11.340/2006 é um documento considerado importante pois protege as mulheres em situação de violência, salva vidas, pune os agressores, fortalece a autonomia das mulheres, educa a sociedade e oferece assistência com atendimento humanizado das vítimas. Em seus 15 anos de existência, a lei passou por ajustes, de acordo com as necessidades e à realidade em que vivem as vítimas do crime no Brasil. Conforme o  Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MNDH), “apenas em 2019, foram seis novas normas legislativas”. Entre os avanços, destaca-se a Lei nº 13.827/19 que permitiu a adoção de medidas protetivas de urgência e o afastamento do agressor do lar pelo delegado. O dispositivo também determinou que o registro da medida protetiva de urgência seja feito em banco de dados mantido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Em 2020, a Lei nº 13.984/20 estabeleceu obrigatoriedade referente ao agressor, que deve frequentar centros de educação e reabilitação, assim como fazer acompanhamento psicossocial. 

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A mudança mais recente aconteceu neste ano, com a sanção da Lei nº 14.188/21 que incluiu no Código Penal o crime de violência psicológica contra mulher, que determina o afastamento imediato do agressor, no qual o cumprimento da pena deve ser em regime fechado, assim como a criação do programa “Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica”. A medida prevê que se escreva a  letra “X” na mão da mulher, preferencialmente na cor vermelha. O objetivo é que a ação funcione como um sinal de denúncia de situação de violência em curso. Concomitante a sanção, neste mês, a Campanha “Agosto Lilás”, veio para reforçar a existência da Lei Maria da Penha e dar ampla divulgação sobre esse direito às mulheres, ressaltando os serviços de atendimento deste público e os meios de denúncia.

 

A Lei Maria da Penha prevê cinco tipos de violência doméstica e familiar contra a mulher: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. A lei é composta por 46 artigos distribuídos em sete títulos, no qual cria mecanismos para prevenir e coibir ações de violência. O artigo sétimo da lei descreve as formas de violência doméstica contra a mulher.

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  • VIOLÊNCIA FÍSICA: Entendida como qualquer conduta que ofenda a integridade ou saúde corporal da mulher. (Espancamento, atirar objetos, sacudir e apertar os braços, estrangulamento ou sufocamento, lesões com objetos cortantes ou perfurantes, ferimentos causados por queimaduras ou armas de fogo, tortura).

  • VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA: É considerada qualquer conduta que cause dano emocional e diminuição da autoestima; prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento da mulher; ou vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões: (Ameaças, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento (proibir de estudar e viajar ou de falar com amigos e parentes), vigilância constante, perseguição contumaz, insultos, chantagem, exploração, limitação do direito de ir e vir, ridicularização, tirar a liberdade de crença, distorcer e omitir fatos para deixar a mulher em dúvida sobre sua memória e sanidade).

  • VIOLÊNCIA SEXUAL: Trata-se de qualquer conduta que constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força: (Estupro, obrigar a mulher a fazer atos sexuais que causam desconforto ou repulsa, impedir o uso de métodos contraceptivos ou forçar a mulher a abortar, forçar matrimônio, gravidez ou prostituição por meio de coação, chantagem, suborno ou manipulação, limitar ou anular o exercício dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher).

  • VIOLÊNCIA PATRIMONIAL: Entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades. (Controlar o dinheiro, deixar de pagar pensão alimentícia, destruição de documentos pessoais, furto, extorsão ou dano, estelionato, privar de bens, valores ou recursos econômicos, causar danos propositais a objetos da mulher ou dos quais ela goste).

  • VIOLÊNCIA MORAL: É considerada qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria. (Acusar a mulher de traição, emitir juízos morais sobre a conduta, fazer críticas mentirosas, expor a vida íntima, rebaixar a mulher por meio de xingamentos que incidem sobre sua índole, desvalorizar a vítima pelo seu modo de se vestir).

 

Para Evandreia Nardone, uma entre tantas vítimas que já sofreram violência doméstica, a Lei Maria da Penha foi uma conquista para todas as mulheres, porém ela ainda é ineficiente quando  se trata de medidas integradas de prevenção, atendimento policial e assistência social às vítimas. “Eu acho que a lei deveria ser mais severa. É necessário mais melhorias para a proteção das mulheres e que os agressores sejam punidos pelos seus atos. O meu ex-marido não foi punido. Eu fui preservada das suas agressões, mas uma punição não teve. Então nada impediu que talvez ele fizesse com outras o que fez comigo”, desabafa.

Foto: Maria Fernanda Machado

Já Tatiana Aguiar, advogada que atua nas áreas criminal e cível, a lei é um ganho para a sociedade, mas são necessárias medidas mais eficazes no combate à violência. “Ela vem para colaborar justamente com a defesa da vítima. O documento ajudou as mulheres a perceberem que são vítimas de violência, pois antes a grande maioria sofria, morria calada. Porém, ainda são necessários mais avanços em políticas públicas, como a implantação de mais delegacias especializadas para que a mulher conte com profissionais capacitados para denunciar um caso de agressão”, destaca. A Lei Maria da Penha é considerada como uma das três melhores no mundo pelas Nações Unidas e prevê mecanismos inovadores, como medidas protetivas, ações de prevenção, suporte às mulheres e grupos reflexivos para homens. “A violência doméstica faz parte de um ciclo, que não vai mudar se alguém não quebrar. Muitas mulheres quebraram esse ciclo em decorrência da lei Maria da Penha”, comentou Ana Flávia Delgado, professora e advogada.

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Para Celeida Martins, Delegada titular da Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher, de Ouro Preto, existe uma série de motivos que podem impedir uma mulher de procurar ajuda em órgão públicos que oferecem apoio à vítima. “A pressão psicológica, sem dúvida, está entre eles, assim como a dependência econômica. É muito importante a atuação conjunta dos órgãos de proteção à mulher, os quais podem fornecer o apoio psicossocial necessário para sair do ciclo de violência. Ademais, é de extrema importância a conscientização de que toda a sociedade pode auxiliar a vítima, a denúncia de violência não precisa partir da vítima e há mecanismos para se manter o sigilo da denúncia”, explicou a Delegada.

 

Andreza Gomes, subsecretária da Subsecretaria de Prevenção à Criminalidade, da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (SEJUSP), de Minas Gerais, afirma que “o ciclo da violência não volta. Ele nunca retroage. A gente nunca tem a violência diminuindo. Começa como uma ameaça, uma pequena agressão, vem o arrependimento do agressor, depois volta com uma violência ainda mais grave e ele se arrepende de novo. O ciclo da violência começa dessa forma, tem a fase da lua de mel, mas ele vai ficando cada vez mais grave e com um período mais curto entre uma violência e outra sofrida. E o final dele é a morte, é o feminicídio”.

A violência doméstica faz parte de um ciclo, que não vai mudar se alguém não quebrar. Muitas mulheres quebraram esse ciclo em decorrência da lei Maria da Penha.
Ana Flávia Delgado, professora e advogada.
CICLO DA VIOLÊNCIA: Conforme o Instituto Maria da Penha, a violência doméstica passa por três ciclos e pode se apresentar de diferentes formas e especificidades, dentro do contexto de um relacionamento, que ocorre dentro de um ciclo que é constantemente repetido. 

Fonte: Instituto Maria da Penha / Arte: Eduarda Garcia 

Aumento da tensão: O primeiro comportamento do agressor é a tensão, assim como a irritação por coisas irrelevantes. Ele também pode ter acessos de raiva e é comum ele humilhar, fazer ameaças e quebrar objetos da vítima. A mulher tenta acalmar o agressor e evita qualquer conduta que possa “provocá-lo”. A mulher normalmente acha que fez algo de errado para justificar o comportamento violento do companheiro. 
 

Ato de Violência: Na segunda fase, o agressor perde o controle, chega ao seu limite que o leva ao ato violento. Nesse momento, a tensão que se acumulou na primeira fase, se transforma nos cinco tipos de violência previstos pela Lei Maria da Penha. Mesmo tendo consciência de que o agressor está fora de controle, o sentimento da mulher pode ser de paralisia. 
 

Arrependimento e comportamento carinhoso: Esta fase é também conhecida como “lua de mel'' e se caracteriza pelo arrependimento do agressor, que se torna amável para conseguir a reconciliação. É bem comum  a vítima se sentir confusa e pressionada a manter o seu relacionamento. Há um período relativamente calmo, em que a mulher se sente feliz por constatar os esforços e as mudanças de atitude. Por fim, a tensão volta e, com ela, as agressões da primeira fase.
 

As dificuldades de quebrar o ciclo da violência

De acordo com a pesquisa de indicadores sociais das mulheres no Brasil fornecidos pelo IBGE,  e tendo como base de análise os números de feminicídio, definido pela Lei n.12.104/2015 que insere o crime no Código Penal, 30,4% dos homicídios de mulheres ocorrem dentro de casa, enquanto para os homens a proporção foi de 11,2%. Estes números demonstram que a segurança dentro do lar não é uma realidade para toda a população, e que um a cada três assassinatos de mulheres ocorreu pelo simples fato de condição do sexo feminino ou violência doméstica. Entre mulheres pretas ou pardas, as taxas são ainda mais altas, dentro e fora de casa. Os números do IBGE mostram que, no domicílio, a taxa para este grupo era 34,8% maior do que para as mulheres brancas e, fora do domicílio, 121,7% maior. 
 

Apesar dos avanços na legislação que protege a mulher, o combate à violência contra elas ainda segue um caminho lento, com diversos obstáculos. Rosmary Corrêa, também conhecida como Delegada Rose, ex-deputada estadual, exerceu seu mandato entre 1990 e 2006 e foi fundadora e delegada da primeira Delegacia de Defesa da Mulher do mundo, em 1985, no estado de São Paulo. “A gente iniciou com três salas nos fundos.

 

Nenhuma de nós tinha a mínima ideia do que esperar. A gente sabia o que era violência doméstica, mas no primeiro dia de atendimento nós tivemos uma fila com mais de 500 mulheres, com todo o tipo de lesão que a gente pode imaginar. A delegacia da mulher foi a primeira política pública que surgiu no país, a partir dela surgiram as outras”, explica .

Foto: Rosmary Corrêa/Acervo Pessoal

De acordo com a Delegada Rose, o processo de enfrentamento à violência contra a mulher era mais difícil antes da criação da lei Maria da Penha, “Nós tivemos retrocessos. Em 1995, foi criada a Lei n. 9.099 e a lesão corporal passou a ser atendida por essa lei, que fazia o homem pagar uma cesta básica para a mulher. Alguns homens diziam ‘se eu soubesse que bater em você era tão barato, tinha batido antes’. Mas aí veio a lei Maria da Penha, que é uma lei completa, que define o que é violência, quem comete a violência, quais são os papéis dos operadores de direito envolvidos, e ela fala sobre as medidas de proteção e no trabalho para ser feito com o agressor. Em 2015, veio a lei do feminicídio que criou o artigo no código penal, do assassinato de mulheres por sua condição de mulher ou em virtude de violência doméstica. A partir das estatísticas levantadas pela delegacia da mulher permitiram que isso começasse a acontecer”, explica. 

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No entanto, para a Delegada Rose, existem problemas em relação à lei Maria da Penha. Apesar de ser considerada uma das melhores do mundo, não é amplamente aplicada e isso impede que muitas mulheres denunciem, embora tentem procurar ajuda em delegacias e demais pontos de apoio. “Não é que a lei não dá conta. A lei é perfeita. O que falta é ela ser aplicada na sua totalidade. Você tem juiz que humilha a vítima, que desqualificam, delegados que não registram, que ficam com piadinhas e mandam a mulher pra casa. A prisão em flagrante não é cumprida. O problema da lei é que ela não é cumprida na sua integralidade. A lei serve sim, mas precisa ser cumprida. Esse é o grande problema. Tem juiz que leva um mês, dois meses para dar a medida protetiva, a essa altura a mulher já foi morta. O problema são os operadores da lei, que são os juízes, promotores, delegados, que acabam não a aplicando da maneira que deveria ser feita”, afirmou ela. 

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Apesar dos muitos avanços, em 2019, apenas 7,5% dos municípios possuíam uma delegacia especializada no atendimento de mulheres (confira aqui o mapa das delegacias feito pelo site Azmina), número que se mantém o mesmo desde 2012, de acordo com os dados fornecidos pelo IBGE. Além da escassez de delegacias especializadas, outros indicadores demonstram as dificuldades que existem para que uma mulher possa se libertar de seu agressor. A Delegada Rose afirma que, em seus atendimentos na primeira delegacia da mulher, o principal fator que fazia com que a vítima seguisse vivendo com seu abusador era a dependência financeira, e que este segue sendo o principal fator atualmente, após mais de 30 anos. “Muitas vezes ela fica porque tem filhos e ela vai para onde? Vai fazer o quê? Não é que ela goste de apanhar, mas ela vai pra debaixo da ponte com os filhos?”, relata.

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De acordo com o relatório do FBSP, Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil, 25,1% das mulheres que sofreram violência durante a pandemia afirmaram que o desemprego, a renda e a impossibilidade de garantir o próprio sustento são os principais fatores para a ocorrência das violências que vivenciaram dentro de casa. Sobre esta questão, Andreza Gomes corrobora os dados: “hoje em dia a violência contra a mulher pode acontecer em qualquer classe social, raça, cor, mas a gente sabe que existe uma concentração dessas vítimas em mulheres que têm uma situação de vida mais vulnerável. Isso tem chegado com uma força maior. Elas não têm um acesso de suporte tão intenso quanto outras mulheres, para um pedido de divórcio, guarda das crianças, é muito mais difícil do que para mulheres com um poder aquisitivo maior”.

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Em relação à independência financeira, vale destacar que os indicadores de monitoramento do mercado de trabalho revelam a desigualdade entre homens e mulheres e apontam uma grande dificuldade de inserção das mulheres no mercado de trabalho. Ainda de acordo com o IBGE, em 2019, a taxa de participação das mulheres com 15 anos ou mais foi de 54,5%, enquanto entre homens este número chega a 73,7%, uma diferença de quase vinte pontos percentuais. Este desequilíbrio no percentual se mantém ao longo dos anos e se manifesta tanto entre mulheres e homens brancos quanto mulheres e homens pretos ou pardos.

Fonte: IGBE / Arte: Eduarda Garcia

De acordo com dados obtidos exclusivamente pelo Universa Uol, em um levantamento de dados realizado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) foi constatado que, embora o ano da pandemia tenha apresentado um número alarmante de casos de violência doméstica, o gasto com políticas para mulheres teve seu menor patamar desde o ano de 2015. No ano de 2020 a Secretaria de Políticas Nacionais para Mulheres, vinculada ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, recebeu o valor de R$124,3 milhões, contudo a verba utilizada chegou apenas a R$ 36,5 milhões. Ainda de acordo com os dados levantados pelo Universa, 2021 apresenta uma perspectiva ainda pior em seus primeiros seis meses, tendo sido gastos somente R$ 13,6 milhões da verba disponibilizada. “Não tenho dúvidas que as políticas públicas evoluíram bastante. O que falta é você primeiro cuidar melhor das portas de entrada, sensibilizar, e fortalecer aquilo que já tem aí: as equipes de assistentes sociais, de psicólogas, defensoria, porque tudo que é de atendimento à mulher é deixado sempre em segundo plano. As polícias têm uma falta enorme de recursos humanos, temos uma defasagem enorme de pessoas. Nós temos que capacitar as portas de entrada para a mulher buscar ajuda. Fazer um trabalho com os policiais que atendem na ponta, com os médicos, enfermeiras, que atuam nas emergências. Aí você começa a poder fazer o encaminhamento dessas mulheres a partir dessas políticas públicas que a gente já tem, mas se você não as pega ali, ou no hospital, ou na delegacia, elas não entram na rede de proteção. Então a primeira coisa é sensibilizar as portas de entrada, para que vejam a importância do atendimento a uma vítima de violência doméstica, que pode se transformar em um feminicídio.” relatou a Delegada Rose.

Foto: Maria Fernanda Machado

Para a subsecretária da Sejusp/MG, Andreza Gomes, é preciso também realizar mudanças nas estruturas que sustentam o pensamento patriarcal e que prendem mulheres aos seus agressores. “Medidas educativas e de rompimento dessa cultura machista que muitas vezes é determinante para esse cometimento da violência. Existem, mas ainda de forma muito tímida. Ainda temos muito que avançar em relação a uma mudança cultural com esses homens agressores. É preciso educar os filhos, dizer o que não é mais aceitável em uma relação. Não se pode naturalizar quando percebe a violência sofrida e cometida por homens próximos a você. A gente sempre ressalta que o homem também tem um papel muito importante nessa prevenção a violência”, afirmou.

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Para a Delegada Rose, a etapa mais importante é, ainda, a libertação financeira da mulher. "O mais importante de tudo, é o empoderamento da mulher. Em primeiro lugar, através da informação. Segundo, através da renda, torná-la independente financeiramente. Você tem que capacitar a mulher, através de cursos, para ela poder se sustentar sem ter a necessidade desse homem. Você tem que capacitar, para ela conseguir se sustentar. Aí sim elas vão começar a ser independentes e empoderadas”, completou.

 

A denúncia é o primeiro passo a ser dado para uma mulher que sofreu com a violência doméstica. Mas, com a redução das verbas destinadas à proteção da mulher, os passos seguintes se tornaram mais difíceis. Políticas voltadas à inserção da mulher no mercado de trabalho e ao auxílio de mães solo também têm sido deixadas de lado, e são medidas importantes para que a mulher possa se emancipar e possuir a estabilidade necessária para que não dependam mais de seus agressores, principalmente durante o período da pandemia, em que estão ainda mais vulneráveis e invisibilizadas. Segundo dados disponibilizados pela Câmara dos Deputados, a proposta orçamentária direcionada às políticas públicas para mulheres do ano de 2021 é 19% menor do que foi disponibilizado no ano anterior.

*Arte da capa: Maria Fernanda Machado

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