Lutas e vivências de uma comunidade invisibilizada
Apesar de cada vez mais em evidência, a população LGBTQIA+ não está inclusa no Censo Demográfico, permanecendo à mercê da violência e da ausência de direitos
Equipe: Jaqueline Ferreira, João Paulo da Silva,
Juliana Rodrigues e Pamella Davis
Em 2021, a população LGBTQIA + está por toda a parte. Seus representantes alcançaram, ao longo de décadas e a duras penas, direitos, espaços na política, na ciência, no esporte, nas artes, no entretenimento e cada vez mais seguem presentes na esfera pública e diferentes camadas sociais. Isso também pode ser observado por meio da revolução digital e do “boom” das redes sociais. A bandeira do arco-íris, que antes tremulava apenas nos guetos e nas cada vez menos “discretas” paradas gays. Nos últimos meses, por todo o país, as cores que representam a vida, a cura (do preconceito), a luz do sol, a natureza, a harmonia e o espírito se fundiram com outras bandeiras como a do Brasil, a de movimentos populares e a de partidos políticos, todas elas contra um inimigo comum: o governo do presidente ultraconservador Jair Messias Bolsonaro.
Após mais de um ano de incertezas e inseguranças pela pandemia da Covid-19, a população brasileira inflou o peito e saiu às ruas para denunciar as mais de 500 mil mortes causadas pelo novo Coronavírus, o uso de medicamentos não comprovados cientificamente, a fome, o desmonte da educação pública, entre outras inúmeras pautas. Lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros e demais integrantes da população LGBTQIA+ ecoam essas reivindicações e seguem pouco reconhecidos institucionalmente, estando inclusive de fora do Censo Demográfico nacional.
João Paulo da Silva, estudante de jornalismo na Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop).
O adiamento da inclusão, no Censo, de questões dirigidas especificamente à população LGBTQIA+ acontece desde a década de 1990. Há 30 anos, a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais (ABGLT) faz reivindicações, tenta mobilizar o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o Ministério do Planejamento (hoje incorporado pelo Ministério da Economia) para inserir questões que objetivem não apenas mensurar numericamente o universo LGBTQIA+, mas também direcionar perguntas que considerem principalmente esses cidadãos e cidadãs. As entidades lutam por um levantamento censitário menos heteronormativo, que não simplifique os gêneros e a sexualidade, como acontece na adoção do binarismo masculino e feminino, por exemplo.
Luiz Morando, Doutor em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), explica que o não reconhecimento de pessoas LGBTQIA + em políticas sociais reflete na falta de informação e gera ainda mais exclusão e vulnerabilidades. Na área de educação, por exemplo, a população de pessoas trans é a que mais sofre evasão escolar, “porque não são bem tratadas ou acolhidas ou pior: são alvo de muita violência”.
A ouropretana, Leandra Souza, 21, como a maioria das pessoas trans, teve que enfrentar agressões intencionais que a fizeram pensar em nunca mais voltar à sala de aula. “Por várias vezes, fui chamada à secretaria e já tive até que assinar um caderno de advertência por ter entrado no banheiro feminino".
Luiz Morando acrescenta que sem a realização do Censo, como ocorreu em 2020, e com a não inclusão de levantamentos relacionados a grupos mais vulneráveis da população, há uma ausência de dados que orientem políticas coletivas de atendimento à saúde, assistência social e segurança pública. Segundo Morando, que há mais de 20 anos pesquisa o resgate da memória das identidades LGBTQIA + em Belo Horizonte - MG, a não realização do Censo vai agravar ainda mais a realidade de grupos historicamente marginalizados, como a população de negros, indígenas, quilombolas e LGBTQIA. “Essa população continuará invisibilizada e apagada das políticas públicas. Em outras palavras, uma população da qual não temos noção real, precisa e clara de seu número”, lamenta.
A primeira ideia que surge na cabeça de grande parte dos brasileiros quando o assunto em pauta é o Censo, certamente se refere a contagem populacional. Para outros, um pouco mais atentos, a pesquisa também abrange a situação dos domicílios, alfabetização, rendimento (monetário e não monetário) e cor ou raça dos entrevistados pelos chamados recenseadores, pessoas contratadas para coletar dados por meio de visitas in loco. Mas o Censo é também uma ferramenta de justiça social e redução de desigualdades.
Vulnerabilidade LGBTQIA+
“A minha filosofia de vida é: O mundo precisa de transformação, eu faço parte desse mundo e eu vou morrer lutando por aquilo que eu acredito, reivindicando os espaços que eu acredito que eu mereço e minha comunidade também”, defende Maria Montenegro Ramsés, 24, graduanda do curso de Direito da Universidade Federal de Lavras (UFLA), mulher trans.
A minha filosofia de vida é: O mundo precisa de transformação, eu faço parte desse mundo e eu vou morrer lutando por aquilo que eu acredito, reivindicando os espaços que eu acredito que eu mereço e minha comunidade também.
Maria Montenegro Ramsés, 24, graduanda do curso de Direito da Universidade Federal de Lavras (UFLA).
Não só para Maria Montenegro, mas para diversos personagens cujas histórias constroem a comunidade LGBTQIA +, a inclusão da comunidade no questionário no Censo Demográfico, é uma forma de combater a vulnerabilidade dessa população. É por isso que é importante questionar quais são as premissas que embasam a criação desse levantamento e os efeitos positivos de seus resultados para a conquista de direitos especializados.
Em relação a isso, Mário Leony, Delegado de Polícia Civil, gay e militante LGBTQIA +, destaca que, comparativamente, existem países muito mais avançados que o Brasil em termos de políticas públicas, como alguns vizinhos latino-americanos.
Mário Leony aponta que um dos desafios para o reconhecimento da população LGBTQIA + é a subnotificação, sendo necessário romper com o medo, por exemplo, de ser ridicularizado justamente pelo histórico opressor da sociedade. “Precisamos avançar muito. Precisamos de campanhas massivas do poder público e institucionais que promovam o acolhimento. É preciso que nos boletins de ocorrência conste o campo para o preenchimento do nome social, por exemplo, para pessoas trans”. Especificamente sobre mulheres trans, Mário destaca ainda que são as que mais encontram dificuldades no acesso à educação e ao mercado de trabalho, incluindo a permanência no emprego.
De acordo com o professor Luiz Morando, a população LGBTQIA+ é alvo de violência e morte, visto que os próprios agentes da segurança pública não sabem lidar e nem planejar ações para evitar essas ações violentas e letais. Para Victor Pinto, Presidente Estadual da União Nacional LGBTMG, mesmo que o Censo contemple perguntas com o intuito de produzir um diagnóstico, haverá dificuldades de levantamento de dados, pois existem barreiras e mesmo medo das pessoas se assumirem.
Não ter certeza do número de pessoas trans que evadem da escola [e que o Censo poderia mensurar], por exemplo, vai acarretar na ausência de ações e programas para manter essas mesmas pessoas na escola, reflete o professor Luiz Morando. O delegado Mário Leony complementa esse raciocínio, reconhecendo que a educação é uma das áreas sensíveis a esse universo de preconceito e desinformação, necessitando de mais investimento e políticas específicas. Para ele, falta o aprofundamento do debate, a reflexão sobre gênero nas escolas. “Pessoas trans sofrem por não se sentirem acolhidas nas escolas, e acabam deixando estes ambientes. E vemos a repercussão deste contexto lá na segurança pública”, afirma.
Apesar de situações como esta dentro do ensino público, existem projetos que promovem um espaço de acolhimento para o público LGBTQIA+, é o caso do Projeto Vidas: Gênero, Diversidade e Sexualidades. Idealizado por Marta Maia, professora aposentada da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop). Em funcionamento desde 2018, a iniciativa tem o objetivo de promover debates, estudos conceituais e históricos e ser um espaço de amparo para pessoas da comunidade acadêmica da Ufop, sendo também um canal de recebimento de denúncias. Para além dos muros da universidade, Marta defende que o Censo poderia ajudar que estes grupos mais vulneráveis consigam ter os seus direitos atendidos. “Ele define políticas públicas e orçamentos que podem contribuir'', reforça.
Preconceito, superação e direitos
Diante da falta de dados oficiais por parte do governo, grupos LGBTQIA + têm documentado durante as últimas décadas, e de forma independente, casos de violência, denunciando a impunidade e a negligência com as quais a apuração destes crimes é feita pelas autoridades brasileiras. Somente em 2020, foram registradas 237 mortes violentas dessa população no Brasil, sendo 224 homicídios e 13 suicídios. O levantamento foi realizado pela Acontece Arte e Política LGBTI+ em parceria com o Grupo Gay da Bahia (GGB), a mais antiga entidade em defesa dos direitos dos homossexuais no Brasil, fundado em 1980.
De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), desde 2017, ano em que o monitoramento começou a ser realizado, a idade em que as pessoas trans são assassinadas mudou para pior. Hoje em dia, a margem passa dos 17 para a partir dos 13 anos. Em 2021, foi identificado que apenas 15% dessa população conseguiu ultrapassar a expectativa média de vida, ou seja, 35 anos.
A edição 2020 do “Atlas da Violência”, levantamento produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), aponta que “a escassez de indicadores é um problema central que precisa ser superado a partir da inclusão de questões relativas à identidade de gênero e orientação sexual nos censos oficiais e, ainda, inclusão de variáveis para se aferir esse tipo de violência nos registros de ocorrência policial”.
Segundo o delegado Mário Leony, sobre as práticas violentas contra a população LGBTQIA +, o Brasil é o país onde mais se mata pessoas. “A gente sabe que essa população é alvo de violência e morte, e que os próprios agentes da segurança pública não sabem lidar e nem planejar ações para evitar essas ações de violência.”, explica Mário.
Leony está longe da figura estereotipada do policial truculento. De sorriso fácil, mas sem deixar de lado a firmeza nas palavras, ele afirma que “os agentes da segurança pública sempre foram adestrados a atuar como cães de guarda da moral e dos bons costumes dominantes, no sentido de reprimir os nossos desejos, amores, afetos e identidades. Uma cultura organizacional muito machista, racista e LGBTfóbica”.
Nicole Ádalla, 33, é um dos exemplos desta situação de fragilidade vivida por pessoas LGBTQIA+ no cotidiano. A belo-horizontina, Miss Minas Gerais Plus Size Igualdade Social, sofreu preconceito no trabalho por estar fora dos padrões ditos “normais” para uma sociedade que não aprendeu a enxergar a diversidade. Quando informou aos seus superiores que participaria de um concurso de drag queen e solicitou a dispensa por um final de semana, perdeu o emprego. “Passei a ter vários problemas que eu não tinha antes. Não tem como falar que não foi preconceito, porque aconteceu depois de avisar que eu tinha uma drag. Se você for mais para o lado afeminado ou ser trans, automaticamente, já está fora do mercado de trabalho”.
Além das dificuldades relacionadas ao emprego, pessoas trans precisam lidar com outro desafio: o direito ao nome social. Somente em março de 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que seria possível à essas pessoas a alteração do nome do registro civil, sem que fosse necessária a realização da cirurgia de redesignação de gênero."
Leandra Souza relembra a sua luta pelo seu nome social: “Cheguei até a pedir a ajuda de um vereador da cidade de Mariana, o que não deu muito certo”. Em 2020, ela conheceu uma advogada que, enfim, conseguiu-lhe a mudança não só de sua certidão de nascimento, mas também a oportunidade de iniciar um novo ciclo em sua vida. Apesar disso, qualquer pessoa trans acima de 18 anos pode solicitar a alteração, em qualquer cartório de registro civil do território nacional, sem a presença de advogado ou defensor público. Para menores de 18 anos, a mudança é possível somente via judicial, segundo informações do “Eu Existo”, projeto que tem o objetivo de monitorar e acompanhar a garantia do direito à alteração do registro civil de pessoas trans.
Leandra Souza. Foto: Ane Souz
Vivências e Afetos
Além de ser excluída socialmente, e quase impedida de ter acesso ao básico como a educação, segurança e trabalho, a comunidade LGBTQIA + tem de travar uma batalha em busca do direito de amar e ser amada.
Cristina*, 27, Mestra em Educação e Madá*, 25, estudante de Letras pela Ufop moram em Mariana e estão juntas há cinco anos. Elas explicam que as pessoas bissexuais são frequentemente julgadas como indecisas. Madá revela como foi se assumir bissexual: “Demorou muito para eu me entender como bissexual. “Aos 12 anos, já sentia atração por meninas e sempre escutei da minha família que isso era uma fase. Depois entendi que eu era uma pessoa múltipla, em constante descoberta. Não é porque a gente é bissexual que a gente vai de repente se desinteressar uma pela outra e passar a se relacionar com homens”.
A família em muitos contextos tem o papel de acalanto, carinho e afeto, mas nem sempre é assim. O lugar onde deveria ser seguro torna-se um pesadelo para pessoas da comunidade LGBTQI+. Buscar a independência financeira é a forma encontrada para que essas pessoas consigam ser quem elas realmente são. Madá fala das violências dentro do seu contexto familiar, que foi marcado por uma madrasta extremamente homofóbica, chegando a agressão física. “O meu pai se mostrou uma pessoa mais aberta, mas a influência dessa pessoa mudou toda a dinâmica e eu me fechei um pouco”.
Morador de Cachoeira do Campo, um pequeno distrito localizado a 24 quilômetros da sede Ouro Preto, Lucas Xavier, 31, é designer de moda e disse que não vê empecilhos para assumir a sua homossexualidade em nenhuma esfera social. “Desde que eu consegui a minha independência financeira, todos sabem. Eu tomei essa postura e é importante se posicionar”, defende. Mas não foi sempre que Lucas se sentiu confortável para viver a sua sexualidade de forma plena. Sua família tem sólidas raízes no catolicismo e, na época em que morava com os pais, se assumir abertamente gay não era uma opção viável.
Maria Ramsés também relata os desafios da trajetória de sua transição. Nascida em uma família extremamente religiosa, a estudante teve dificuldades para contar aos parentes sobre sua identidade de gênero. Quando finalmente conseguiu conversar com sua família, porém, teve uma surpresa: além do sentimento libertador da revelação, foi acolhida por parte dos familiares.
Maria conta um pouco como é ser uma mulher trans no dia-a-dia, e como os estigmas atravessam as relações: “Sou uma mulher trans, como os caras me veem: como um objeto de desejo, objeto de desejo sexual e não afetivo.” Ela também traz a discussão racial sobre afetos, porque além de ser uma mulher trans, também é uma mulher negra. “Pessoas negras tem a sua imagem hipersexualizada pela sociedade, vemos muito isso durante as comemorações do carnaval, o próprio evento da Globeleza mostra o ápice da sexualização dos corpos negros”.
As lutas diárias das pessoas LGBTQI+ podem ser menos dolorosas, quando não precisam lutar sozinhas, quando se tem apoio e acima de tudo respeito. O autônomo, Rafael Rocha, 24, e o administrador, Gabriel Ribeiro, 27, estão juntos há quatro meses e destacam que avanços já foram alcançados, como a liberdade de andar de mãos dadas pela rua e o orgulho de ser quem se é. “A maioria das pessoas bate no peito e diz: ‘Eu sou’, e pede por respeito”. Eles têm uma expectativa muito positiva e consideram o respeito como fundamental para todos.
Hércules Corrêa Toledo, 56, professor, militante, gay, relembra o momento em que ele conta a um amigo, dos tempos da faculdade, que estava apaixonado por outro colega. Seu amigo, colocou a mão em seu ombro e perguntou a ele “por que a gente é assim?” Fazendo referência à famosa canção de Cazuza que marcou aquela época com sua irreverência. E depois de muitos anos ao ser indagado novamente “por que a gente é assim?” Hércules responde: "A gente é assim, porque a gente nasceu assim. A gente nasce gay, lésbica, bissexual, trans. Da mesma forma que a gente nasce com o olho azul, verde ou com corriqueiros olhos castanhos. Da mesma forma como a gente nasce preto ou branco. Não há qualquer explicação para isso. A gente é assim porque nasce assim e isso basta”.
* Nomes alterados por solicitação das fontes.
Confira, falas inéditas dos personagens da reportagem, no vídeo logo abaixo: