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Por uma segunda abolição

Com milhões de livros vendidos, jornalista contribui ao estudo da história do Brasil apostando em grandes reportagens sobre a constituição do país

Equipe: Gabriel Luis, Helen Aquino e Marcelo Afonso

Laurentino Gomes, 64, se viu surpreendido com os comentários agressivos que recebeu de cidadãos portugueses ante a sugestão dada à revista Visão, em agosto deste ano, de que Portugal deveria pedir desculpas formais por seu papel na história da escravidão. Afinal de contas, em suas palavras, este seria “um primeiro passo importante de reconciliação” entre os diversos países marcados por essa que ele considera ser uma das maiores atrocidades de todo o mundo. Para o jornalista e escritor brasileiro, “a dificuldade em sequer admitir a hipótese indica que a escravatura é ainda uma chaga aberta…” Uma ferida que, na América, vinculou a cor das mais de doze milhões de pessoas sequestradas do continente africano à condição de sujeito escravizado — corrompendo a forma como seríamos constituídos, séculos mais tarde, em nação supostamente independente. 

 

Por falar nisso, falta pouco mais de um ano para o bicentenário da Independência e ainda não nos livramos de nosso passado escravocrata. Quando a avaliação recai sobre o tema, o quatro vezes vencedor dos prêmios Jabuti nas categorias livro-reportagem e não-ficção defende uma “segunda abolição” para o país. “Nossa população afrodescendente foi abandonada à própria sorte”, ele diz. Seria preciso, portanto, reverter o resultado que se mostra hoje nas estatísticas e indicadores sociais sobre violência, emprego, moradia, educação e saúde que afetam, majoritariamente, as populações pretas e pardas.

 

Nesta entrevista, cedida à 30ª edição da revista Curinga por e-mail, o escritor fez algumas observações sobre a gestão milico-miliciana de Jair Bolsonaro; os embates acerca da memória da escravidão, a que ele define como “o fator mais determinante de toda a história brasileira”; nossa percepção sobre cidadania e trabalho; assim como algumas perspectivas, “positivas”, ele afirma, para o futuro próximo.

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No primeiro volume de “Escravidão”, você nos explica que, com a invasão da América, a escravização foi legitimada a partir de uma ideologia racista baseada na cor da pele. Uma organização social que corrompeu nossa percepção acerca da cidadania e também acerca do trabalho. Você poderia nos falar um pouco mais sobre isso? 

 

O racismo é uma consequência histórica, resultado da escravização de milhões de africanos de pele negra, mas também uma forma de hierarquização de poder. Esta é uma das consequências mais profundas e duradouras da escravidão africana nas Américas: o nascimento de uma ideologia racista, que passou a associar a cor da pele à condição de escravizado.

Por essa ideologia, usada como justificativa para o comércio e a exploração do trabalho cativo, o negro seria naturalmente selvagem, bárbaro, preguiçoso, idólatra, de inteligência curta, canibal, promíscuo. “Só podendo ascender à plena humanidade pelo aprendizado na servidão”, na definição do africanista brasileiro Alberto da Costa e Silva. Sua vocação natural seria, portanto, o cativeiro, onde viveria sob a tutela dos brancos, podendo, dessa forma, alçar eventualmente um novo e mais avançado estágio civilizatório.

Essa ideologia, no meu entender, permanece ainda hoje oculta nas formas preconceituosas em que se relacionam brancos e negros no Brasil. O abolicionista Joaquim Nabuco dizia que a escravidão havia corrompido e deturpado para sempre a maneira como a sociedade brasileira poderia ter se constituído. Banalizou a própria noção do trabalho, uma vez que, no Brasil escravista, quem trabalhava era o negro, já que os brancos e fidalgos consideravam o trabalho indigno. Disso resultou uma classe média predatória, que procura extrair o máximo de proveito do trabalho mal remunerado das camadas mais pobres da população, sem contribuir efetivamente para a construção de uma sociedade nacional justa, digna e cidadã.

 

A abolição da escravatura não assegurou nenhuma medida de proteção social aos ex-escravizados. Ao longo dos anos, o ativismo negro vêm conquistando alguns avanços, como a política de cotas nas universidades. Contudo, essas medidas são vistas como paliativas, pois não resolvem questões como a segregação de pessoas negras no mercado de trabalho. Quais poderiam ser as medidas definitivas para resolver a dificuldade do acesso ao trabalho digno sofrido pela população negra no Brasil?

 

A melhor maneira de enfrentar a herança da escravidão, que inclui o racismo e a desigualdade social, é pela educação, pela leitura e, em particular, pelo estudo da história. Precisamos refletir sobre o que aconteceu no passado para entender como chegamos até aqui e também que decisões adotar no futuro para corrigir os problemas acumulados ao longo dessa jornada.

A escravidão não é apenas assunto de museu e livros de história. É uma realidade presente e assustadora no Brasil de hoje. Alguns dos grandes abolicionistas do século 19, como o pernambucano Joaquim Nabuco e o baiano André Rebouças, diziam que não bastava acabar com a escravidão. Era preciso também enfrentar o seu legado, dando terra, trabalho, educação e oportunidades aos ex-cativos e seus descendentes. Essa segunda abolição o Brasil jamais fez. Nossa população afrodescendente foi abandonada à própria sorte. O resultado está hoje nas estatísticas e indicadores sociais, onde a nossa população negra aparece como a parcela da sociedade com menos oportunidades e a que mais sofre com a violência e a desigualdade social.

Um segundo legado da escravidão está no preconceito. O racismo brasileiro está em toda a parte, na paisagem, nas estatísticas e no comportamento das pessoas. Somos um dos países mais segregados do mundo, e isto sem necessidade de leis de segregação racial, como aquelas que existiram na África do Sul e nos Estados Unidos. O racismo produziu um sistema de castas na sociedade brasileira. Basta observar quem mora nas periferias insalubres, perigosas, dominadas pelo crime organizado, pelo tráfico de drogas, sem qualquer assistência do Estado brasileiro. Na maioria, são pessoas afrodescendentes.

Enquanto isso, os chamados “bairros nobres”, com boa qualidade de vida, segurança, serviços públicos e educação de qualidade, são habitados por pessoas descendentes de colonizadores europeus brancos. Estatisticamente falando, a pobreza é sinônimo de negritude no Brasil. Com raras exceções, quanto mais negra a cor da pele, mais pobre é a pessoa.

No meu entender, só a persistência de uma ideologia racista, que recusa oportunidades iguais a todos os brasileiros, independentemente da cor da pele, explicaria essas diferenças. Ou seja, o verdadeiro racismo não se expressa apenas com palavras e atitudes ofensivas, que a lei proíbe, mas na recusa em dar oportunidades às pessoas negras ou afrodescendentes de se realizarem plenamente como seres humanos. Esse é o famoso racismo estrutural, enfronhado na nossa maneira de ser, de agir e de pensar. Uma segunda abolição significa enfrentar de forma corajosa e decisiva o problema da desigualdade social e da violência decorrentes do racismo no Brasil.

O verdadeiro racismo não se expressa apenas com palavras e atitudes ofensivas, que a lei proíbe, mas na recusa em dar oportunidades às pessoas negras ou afrodescendentes de se realizarem plenamente como seres humanos. Esse é o famoso racismo estrutural, enfronhado na nossa maneira de ser, de agir e de pensar

Em entrevista ao também jornalista Antônio Abujamra, em 2013, você afirmou que seu futuro livro teria como cenário a Guerra do Paraguai. Quando é que você decidiu deixar essa ideia de lado e iniciar as pesquisas para “Escravidão”?

 

A mudança de tema foi uma decorrência natural do meu aprendizado a respeito da história do Brasil ao pesquisar e escrever a primeira trilogia de livros. Em “1808”, “1822” e “1889”, eu procurei explicar as três datas fundamentais para a construção do Brasil como nação independente no século 19. Essas datas ajudam a explicar a maneira como nos constituímos do ponto de vista legal, institucional e burocrático. Mas não são suficientes para entender os aspectos mais profundos da nossa identidade nacional.

Para tanto, é preciso ir além da superfície. Observar o que fizemos com os nossos povos indígenas e negros, observar quem teve acesso às oportunidades e privilégios ao longo da nossa história e como a sociedade e a cultura brasileiras foram se moldando desde a chegada de Pedro Álvares Cabral à Bahia, nos 1500, até os dias de hoje.

Ao fazer isso, eu me dei conta de que o assunto mais importante de nossa história não está nos ciclos econômicos, nas revoluções, no império ou na monarquia. Está na escravidão. O trabalho cativo deu o alicerce para a colonização portuguesa na América e para a ocupação daquele imenso território. Também moldou a maneira como nos relacionamos uns com os outros ainda hoje. Neste início de século 21, temos uma sociedade rica do ponto de vista cultural, diversificada e multifacetada, mas também marcada por grande desigualdade social e manifestações quase diárias de preconceito racial. Isso, no meu entender, é ainda herança da exploração desumana, cruel e indigna do trabalho de milhões de pessoas forçadas a cruzar o Oceano Atlântico a bordo dos navios negreiros para viver como cativas no Brasil colônia.

No final do século 17, o padre jesuíta Antônio Vieira cunhou uma frase famosa: “O Brasil tem seu corpo na América e sua alma na África”. É preciso entender que o Brasil foi o maior território escravagista do hemisfério ocidental. Recebeu quase cinco milhões de cativos africanos, cerca de 40% do total de doze milhões embarcados para as Américas. Como resultado, tem hoje a maior população negra do mundo, com exceção apenas da Nigéria. Foi também o país que mais tempo resistiu a acabar com o tráfico negreiro e o último a abolir o cativeiro, pela Lei Áurea de 1888 — quatro anos depois de Porto Rico e dois depois de Cuba. A escravidão foi a experiência mais determinante, na história brasileira, com impacto profundo na cultura e no sistema político, para a origem do país, logo depois da independência. Nenhum outro assunto é tão importante e tão definidor para a construção da nossa identidade.

 

O projeto sobre a compreensão da escravidão é bastante ambicioso, você mesmo o diz. Terminada a pesquisa, quais foram os recortes cronológicos, os temas, por assim dizer, propostos e organizados em cada edição dos novos livros?

 

Os três livros compreendem uma série de ensaios e reportagens de campo e, sempre que possível, procuram seguir uma ordem cronológica. Há também um recorte geográfico. O primeiro volume, lançado em 2019, vai do primeiro leilão de pessoas negras escravizadas em Portugal, no dia 8 de agosto de 1444, até a morte de Zumbi dos Palmares, em 20 de novembro de 1695. Na geografia, se concentrou no continente africano. Pela óbvia razão de que, ao estudar a escravidão, é preciso começar sempre pela África. Ao todo, fiz cinco viagens a oito países africanos, onde conheci as rotas, os castelos e as feitorias de onde saíram os as pessoas trazidas à força ao Brasil.

O segundo livro cobre o século 18, auge do tráfico negreiro no Atlântico, e tem como foco o Brasil, especialmente Minas Gerais, com as corridas do ouro e do diamante. Para escrever este segundo volume, li cerca de duzentos livros. Esse é sempre o primeiro passo e também mais fundamental no trabalho de pesquisa. A bibliografia sobre a escravidão no século 18 é vasta e muito boa, no Brasil e em outros países, como os Estados Unidos. Também há inúmeros documentos e peças de acervo de museus em formato digital, disponíveis na internet. Depois de ler essas obras, coloquei o pé na estrada para o trabalho de reportagem.

Em Pernambuco, visitei antigos engenhos de açúcar. Na Serra da Borborema, agreste paraibano, participei de rodas de conversas com as moradoras dos quilombos Cruz da Menina e Caiana dos Crioulos. Também visitei comunidades quilombolas em Alagoas, Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. Em Diamantina, antigo Arraial do Tijuco, centro da mineração de diamantes no século 18, percorri a pé trechos do “Caminho dos Escravos” que margeia o rio Jequitinhonha. Em Ouro Preto, deslumbrei-me diante de igrejas, museus, casarões e antigas minas de ouro, tudo fruto do trabalho de escravizados. No Rio de Janeiro, estive no Cais do Valongo, o mais importante entreposto do tráfico negreiro da América no final do século 18.

 

O que podemos esperar para o terceiro volume da série? 

 

O terceiro vai tratar do século 19, da abolição formal da escravidão e do seu legado entre nós ainda hoje. Terá como foco principal o movimento abolicionista, o tráfico ilegal de cativos e o fim, ao menos formal e legal, da escravidão no século 19. Pretendo mostrar como o pacto entre a aristocracia escravista e o trono brasileiro impediram que o Brasil resolvesse o problema do tráfico negreiro e da própria escravidão ainda na época da Independência, como defendia José Bonifácio de Andrade e Silva. O Brasil foi o último país da América a acabar com o tráfico, pela Lei Eusébio de Queirós, de 1850, e o último a abolir a própria escravidão, pela Lei Áurea de 13 de maio de 1888. Mas não enfrentou, nem resolveu o legado da escravidão, contrariando o que defendiam os nossos grandes abolicionistas no século 19. Há um “projeto de Brasil” que ficou abortado ou interrompido naquela época. E isso explica muitos dos nossos problemas atuais.

 

Temos como exemplo o caso de Madalena Gordiano, mulher negra que passou 38 anos vivendo em situação análoga à escravidão, em Patos de Minas - MG. Ela provavelmente não é a única a passar por esse tipo de situação…

 

A violência e os abusos decorrentes do preconceito racial se repetem com frequência assustadora entre nós. Quando lancei o primeiro volume da trilogia, em setembro de 2019, o noticiário era dominado por um episódio grotesco, em que um garoto negro, acusado de furtar uma barra de chocolate, fora surrado com chicote nas dependências de um supermercado. Chicotear pessoas negras foi uma das grandes especialidades do Brasil escravista por mais de 350 anos. Havia manuais que detalhavam como essa punição deveria ser aplicada, de preferência em público, para servir de exemplo aos demais cativos, e em doses bem medidas, para não incapacitar o escravizado para o trabalho.

Agora, passados dois anos, outro escândalo está na pauta dos brasileiros: a história de uma mulher jovem, designer e modelo, grávida de quatro meses, morta por uma bala “perdida”, disparada a esmo durante um confronto entre a polícia e o crime organizado na guerra civil em andamento no Rio de Janeiro. Há um genocídio de pessoas negras e jovens em andamento no Brasil, tanto quanto havia na época da escravidão.

O lançamento deste segundo volume da trilogia coincide também com a história de Madalena Gordiano. Ainda hoje, o regime escravista persiste no mundo sob formas de trabalho desumanas, indignas e inaceitáveis para os padrões éticos que julgávamos ter atingido neste início de século 21.

Uma organização britânica, a Anti-Slavery International, a mais antiga entidade de defesa dos direitos humanos, fundada em 1823 para combater o tráfico negreiro, afirma que existem atualmente mais escravizados no mundo do que em qualquer período nos 350 anos de escravidão africana nas Américas. Seriam 40 milhões de pessoas vivendo hoje em condições de vida e trabalho análogas às da escravidão – ou seja, quatro vezes o total de cativos traficados pelo Atlântico até meados do século 19.

Ainda segundo a Anti-Slavery Internacional, a cada ano, cerca de 800 mil pessoas são traficadas internacionalmente, ou mantidas sob alguma forma de cativeiro, impossibilitadas de retornar livremente e por seus próprios meios aos locais de origem. E, lamentavelmente, nosso Brasil aparece sempre com destaque nesta lista suja. A escravidão é um tema que incomoda muita gente porque desmente esses nossos mitos mais arraigados, como o da fantasiosa democracia racial. Mas precisamos enfrentá-los de forma corajosa.

A escravidão foi a experiência mais determinante na história brasileira, com impacto profundo na cultura e no sistema político que deu origem ao país depois da independência. Nenhum outro assunto é tão importante e tão definidor para a construção da nossa identidade.

Você comentou em uma entrevista que as pessoas escravizadas vindas da Costa do Ouro, atual República de Gana, eram muito valorizadas em Minas Gerais por terem conhecimento técnico na exploração de minas. No entanto, a história que nos é contada diz que “o negro” servia apenas para o trabalho braçal, não qualificado. Qual o impacto dessa informação nos dias de hoje?

 

Infelizmente, há um projeto nacional de esquecimento, que procura esconder o protagonismo africano na história brasileira. As contribuições africanas foram cruciais para a construção do Brasil. Elas podem ser exemplificadas pela história de um homem anônimo, negro ou mestiço, descendente de africanos escravizados, que teria sido o responsável pela descoberta do ouro em Minas Gerais, no final do século 17. 

Infelizmente, sabe-se muito pouco a seu respeito. O único registro que dele sobrou está numa passagem do livro “Cultura e Opulência do Brasil: pelas suas drogas e minas”, do padre jesuíta André João Antonil. Até recentemente, uma historiografia ufanista atribuía quase que exclusivamente aos bandeirantes, todos homens supostamente brancos, a façanha pela descoberta de ouro e diamantes e a consequente ocupação do território brasileiro na primeira metade do século 18.

Isso é parcialmente verdadeiro. Embora relegadas ao segundo plano nos museus, livros e salas de aula, pessoas negras e mestiças foram, muitas vezes, protagonistas dos grandes acontecimentos da história do Brasil. O tráfico negreiro era menos aleatório e irracional do que se imagina. Ao contrário do que, por muito tempo, sustentou a versão preconceituosa e excludente do colonizador, os africanos escravizados que chegavam à América não eram uma massa de mão-de-obra cativa ignorante, selvagem, bárbara, despreparada para os desafios impostos pelas diferentes atividades econômicas desenvolvidas pelos europeus no Novo Mundo.

As pessoas africanas escravizadas não eram apenas commodities, mercadorias como outras quaisquer, cujo valor e preço dependessem somente do vigor físico ou da força dos músculos, definidos pelo sexo, pela idade e pelas condições de saúde. Além de seres humanos acorrentados e marcados a ferro quente, os navios negreiros transportavam em seus porões conhecimentos e habilidades tecnológicas dos países africanos, que seriam cruciais na ocupação europeia do continente americano. Uma dessas tecnologias era justamente a mineração de ouro e de diamantes.

 

Diferentemente da Alemanha, mas também outros países europeus, onde qualquer alegoria ao nazismo é considerada crime, vemos aqui no Brasil um embate entre nossa memória, seja da escravidão ou mesmo da ditadura que se instaurou após o golpe militar de 1964, e nossa identidade, a forma como nos enxergamos como nação. Quais serão os desafios para as gerações futuras caso esse e outros problemas não sejam resolvidos?

 

Personagens, datas e acontecimentos históricos são ferramentas de construção de identidade. Funcionam como âncoras lançadas ao passado, nas quais procuramos alicerçar valores, convicções, sonhos e aspirações do presente, enquanto preparamos a jornada rumo ao futuro. E, como todos os símbolos, geralmente são alvos de revisionismos, de edificações imaginárias e de manipulações com objetivos políticos.

Tempos atrás, o nosso vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, causou controvérsia nas redes sociais ao homenagear colonizadores portugueses e bandeirantes como “pioneiros”, exemplos de “empreendedores” na história brasileira. Eu evitei entrar na polêmica mas, se tivesse de entrar, teria recomendado ao general Mourão estudar bem a história desses “empreendedores”. Muitos deles acumularam fortunas e poder capturando e traficando pessoas. Um caso famoso é o do bandeirante Raposo Tavares, que dá nome a uma importante rodovia no interior de São Paulo. Era um grande caçador e escravizador de indígenas. Numa só expedição, capturou 50 mil índios guaranis, vendidos em São Paulo, cidade cuja primeira atividade econômica se estabeleceu com a “feira de trato”, ou seja, um mercado de pessoas indígenas.

Por isso, dependendo do ponto de vista de quem os estuda, os bandeirantes podem ser vistos hoje como heróis ou vilões da história brasileira. Segundo a visão romântica por muito tempo alimentada pela historiografia tradicional e ufanista, seriam eles responsáveis pela conquista e pela consolidação do território nacional. Por essa razão, ainda hoje são festejados e homenageados com nomes de cidades, bairros, monumentos e diversas rodovias – como a Raposo Tavares, a Anhanguera, a Fernão Dias e a própria Bandeirantes, todas no interior paulista.

Os fatos, porém, nem sempre correspondem à realidade. Embora fossem, de fato, homens destemidos e corajosos, que asseguraram as dimensões continentais que o Brasil tem hoje, os bandeirantes tinham como primeiro e principal objetivo a captura de índios – atividade que exerceram com escala e violência incomparáveis. Seus lucros eram resultado unicamente da pilhagem, do roubo e da escravização dos indígenas. Por isso, é curioso observar que ainda sejam celebrados pelas autoridades neste início de século 21.

 

Como repensar o papel do jornalista nessa frente?

 

Esse clima de negacionismo, polarização e ódio me preocupa muito. Acho que em nada contribui para o estudo da escravidão nem para a construção do Brasil dos nossos sonhos. Mais preocupante é ver que a discórdia muitas vezes é semeada por quem deveria dar exemplos de serenidade, discernimento e sabedoria. Infelizmente, isso inclui o próprio presidente da República. Mas esse é também um momento decisivo para os jornalistas. Poucas atividades humanas enfrentam desafios tão grandes e contraditórios quanto o jornalismo. As inovações tecnológicas na produção, edição e distribuição de conteúdo transformaram radicalmente a rotina nas redações. O resultado é a queda acelerada na audiência dos canais de televisão e na circulação de jornais e revistas. A internet facilita o trabalho de apuração das informações, mas também gera um “empreguiçamento” geral nas redações. Muitos jornalistas deixaram de ir para a rua. Ficaram reféns da tela do computador, em vez de entrevistar pessoas, testemunhar os acontecimentos e tomar contato com a realidade fora das redações. O futuro vai depender do empenho, do talento e da capacidade de inovar de cada profissional envolvido nesse desafio. Mais do que nunca precisamos ter discernimento e responsabilidade na coleta e na análise das informações. Os jornalistas precisam zelar pela sua própria credibilidade. Só assim poderemos ajudar as pessoas a navegar nesse dilúvio de fake news que ameaça as próprias bases da nossa civilização.

 

A extrema-direita de Jair Bolsonaro ataca, quase sempre com ondas de desinformação na Internet, especialmente as pessoas do movimento negro, do movimento LGBTQIA+ e feministas. Usam, inclusive, termos como “feminazis” e “gayzistas”. Existe aí uma inversão identitária, não é mesmo? Como explicar, a partir de uma perspectiva histórica, esse tipo de fenômeno moderno?

 

Esse discurso tem o claro propósito de perpetuar a estrutura de poder e dominação vigente no Brasil desde os seus primórdios. O uso de determinadas expressões, a maneira de narrar e interpretar fatos e conjunturas históricas é usada de forma deliberada para justificar injustiças e desigualdades que sempre existiram entre nós. Durante a campanha eleitoral de 2018, o atual presidente Jair Bolsonaro afirmou diversas vezes que os portugueses “sequer entravam na África para capturar escravos”. Segundo ele, os próprios africanos escravizavam africanos. Obviamente os portugueses entravam, sim, na África. Ocuparam e colonizaram Angola, um território enorme, para abastecer o tráfico negreiro. Mas essa discussão pode ter consequências políticas muito ruins. Ao insistir que os africanos participaram e lucraram com a escravidão, Bolsonaro quer dizer que não haveria razão para manter, no Brasil, um sistema de cotas de inclusão dos afrodescendentes em escolas ou postos da administração pública.

A chamada “dívida social” brasileira em relação aos descendentes de pessoas escravizadas estaria anulada pelo fato de os africanos serem corresponsáveis pelo regime escravista. Desse modo, não haveria por que indenizá-los ou compensá-los pelos prejuízos sociais e históricos decorrentes disso. Tudo isso é muito injusto porque, obviamente, não se pode culpar os escravizados pela própria escravidão. O fato de chefes africanos terem participado do tráfico nada tem a ver com a enorme dívida social e real que o Brasil tem com os seus afrodescendentes. Basta ver as estatísticas, onde a nossa população negra aparece como a parcela da sociedade com menos oportunidades e a que mais sofre com a desigualdade social crônica brasileira. Precisamos corrigir isso urgentemente. E não podemos nos esconder atrás de falsas e incorretas discussões a respeito de fatos históricos.

O legado da escravidão, que se traduz em desigualdade social no Brasil, é um desafio urgente, que exige nossas atenções e esforços como cidadãos, independente da nossa cor da pele e das nossas preferências político-partidárias.

O que poderia ser feito para contornar esse projeto político de apagamento e manipulação da história? Como podemos fazer para que o brasileiro compreenda o processo de escravidão no Brasil e adquira consciência?

 

Até muito recentemente, a escravidão era tratada como tema secundário, quase casual, nos livros didáticos e na historiografia oficial. Isso não aconteceu por acaso. Era resultado de um projeto nacional de esquecimento. Felizmente, essa atitude vem mudando. Felizmente, o assunto tem se tornado cada vez mais importante entre os brasileiros. Temos de estudar e refletir cada vez mais sobre ele.

O Brasil, maior território escravista do hemisfério ocidental até meados do século 19, nunca teve um grande museu nacional da escravidão e da cultura negra. É uma prova do processo de apagamento da memória africana. Museus, como se sabe, não são apenas lugares de passeio e entretenimento. São locais de estudo e reflexão. Não ter um museu com esse perfil é, portanto, parte desse projeto nacional de esquecimento. Acho que, oculto sob esse aparente desinteresse, existe um projeto nacional de esquecimento. O Brasil abandonou os ex-escravizados e seus descendentes à própria sorte depois da Lei Áurea. Nunca se preocupou em lhes dar terra, trabalho, educação e oportunidades.

Abandonou também a própria memória da escravidão. Em vez de estudar e refletir a sério sobre sua a história e legado da escravidão, preferiu construir alguns mitos a respeito de nós mesmos, como o da falsa e ilusória escravidão benévola, patriarcal e boazinha, o que também teria dado origem a uma grande democracia racial brasileira. Tudo isso é mito e está sendo confrontado hoje pela realidade dos números, que mostram um abismo de oportunidades e condições de vida entre o “Brasil europeu” e o “Brasil africano”. Rediscutir nossa identidade nacional, o que inclui um reconhecimento da importância do legado da escravidão, é um dos nossos desafios mais urgentes.

 

Você é jornalista e grande parte de sua obra tem a história do Brasil como protagonista. De que forma as narrativas jornalísticas em aproximação à historiografia podem contribuir no despertar de uma consciência histórica da população?

 

Minha contribuição ao estudo da história do Brasil é de linguagem. Na pesquisa dos meus livros eu uso a técnica da reportagem. Procuro observar os acontecimentos e personagens sob a ótica do jornalismo, sem me preocupar com nuances teóricas que, no ambiente acadêmico, são muito importantes. Isso me dá uma liberdade de observação e de narrativa muito grande.

O grande desafio é ampliar o interesse do público pela história sem banalizar o conteúdo. Essa é uma linha tênue e perigosa. Se o autor ficar só na superfície e na banalidade, o livro não oferecerá contribuição alguma, será irrelevante. Se, ao contrário, der um mergulho muito profundo, não conseguirá prender a atenção desse leitor menos especializado. Mas entendo também que esse é o desafio permanente do bom jornalista ou do bom professor.

Eu sou um jornalista que escreve livros-reportagens sobre a história do Brasil. As pessoas às vezes me perguntam se, pelo fato de deixar o trabalho nas redações e virar escritor, eu mudei de profissão. Não, eu continuo sendo o jornalista que sempre fui nessas últimas três décadas. Não mudei de profissão, apenas de formato. Antes faria reportagens para jornais e revistas. Hoje, escrevo livros-reportagens, mas o olhar e o método de trabalho continuam os mesmos.

Isso inclui, por exemplo, uma grande atenção aos detalhes na hora de escrever e editar um livro. É preciso escolher uma boa capa, fazer um título e subtítulo atraentes, caprichar nas legendas das ilustrações, usar recursos visuais como mapas, infografias e linhas do tempo. É preciso, principalmente, um grande cuidado no texto, de modo a organizar uma história capaz de atrair e reter a atenção dos leitores, sem nunca deixá-la monótona ou previsível. São todas técnicas e ferramentas que a comunidade jornalística desenvolveu ao longo de muitas décadas e que eu procuro, agora, aplicar nos meus livros.

Um livro de história precisa respeitar as fontes e não preencher lacunas do conhecimento histórico com ficção. Também precisa ser firme e convincente nas ideias e informações que defende. Eu leio muito, pesquiso documentos, vou aos locais em que as coisas aconteceram. Apesar da distância no tempo, esses lugares ainda guardam hoje muita informação para quem tiver o olhar atento. O resultado, portanto, é um livro que combina boa pesquisa bibliográfica e documental com observações atuais que só o olhar de um repórter consegue fazer. Isso ajuda a aproximar essa história dos leitores, sem deixar que ela fique congelada no passado, insípida, inodora e insensível para quem está vivo hoje.  

 

Hoje, muito se discute sobre a necessidade das minorias falarem por si mesmas. No entanto, o ofício do escritor/jornalista/historiador consiste, basicamente, em narrar a história do outro. Essa é ou já foi uma situação conflitante para você? Como você lida com isso?

 

Trato dessa questão logo na introdução do primeiro volume da trilogia Escravidão. Na história da escravidão, existem os olhares negros, os olhares brancos e os olhares atentos. Eu me esforço para ser parte deste terceiro grupo. Também acredito que a riqueza da disciplina de História está na possibilidade das múltiplas narrativas, leituras e interpretações. O meu é um entre muitos outros possíveis olhares sobre o tema. A escravidão não é assunto exclusivo da direita ou da esquerda, de brancos ou negros. É um tema com o qual todos nós, brasileiros, deveríamos nos preocupar. Todos nós que estamos vivos hoje somos descendentes de pessoas escravizadas ou de “senhores de escravos”. O legado da escravidão, que se traduz em desigualdade social no Brasil, é um desafio urgente, que exige nossas atenções e esforços como cidadãos, independente da nossa cor da pele e das nossas preferências político-partidárias. 

 

E como você vê o futuro do país depois da pandemia e da gestão extremista do atual presidente?

 

O momento é, de fato, muito desanimador. O atual governo é hostil ao estudo e à reflexão sobre o tema da escravidão. Algumas falas do presidente da República e de seu representante à frente da Fundação Palmares ecoam o discurso de supremacia branca e tendem a perpetuar antigas distorções a respeito do assunto. Obviamente há um discurso revisionista e negacionista no ar, que complica muito o estudo e a reflexão sobre a herança escravista brasileira, incluindo seus traços mais perversos, como o racismo e a desigualdade social. Mas não podemos desanimar. De um ponto de vista histórico, as coisas podem melhorar no futuro. 

*Arte capa: Helen Aquino

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