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Histórias por trás dos números

As memórias permanecem vivas nas famílias que perderam entes queridos vítimas da Covid-19

Equipe: Gabriel Figueredo, Gabriel Leal,
Karine Oliveira e Pedro Vieira

Há um ano e cinco meses, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a pandemia de Covid-19. Desde então, a população mundial compartilha um mesmo sentimento: o luto. No Brasil de 2021, as vítimas do coronavírus ultrapassam 500 mil e por trás dos números devastadores está uma nação que sofre pelas perdas precoces de pessoas queridas. Aliado à dor da perda, está o sentimento de indignação de milhares de brasileiros que presenciam a ineficácia do governo ao propor ações de enfrentamento à crise sanitária. 

A não realização do Censo Demográfico de 2020 e o seu cancelamento em 2021, por exemplo, é uma decisão do Governo Federal que afeta diretamente o desenvolvimento de estratégias para combate à pandemia. Sem a pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), não há informações precisas sobre a população total do país e sua presença pelo território, consequentemente, a distribuição correta das vacinas para os estados e municípios é comprometida.

Nesta fotorreportagem, conversamos com famílias que vivenciam o descaso do Governo Federal ao longo da pandemia e que neste momento, são atravessadas pelo luto. Maria Odilia bordava afetos, Antônio tinha uma música para cada pessoa, Cláudia sonhava em ser advogada e Célio dedicou sua vida ao coletivo e popular. Esta fotorreportagem é uma homenagem à memória de quatro brasileiros que tiveram suas vidas interrompidas pela Covid-19. 

Maria Odilia Amaral de Melo

Nasceu em 19 de novembro de 1940

Falecimento: 12 de abril de 2021, aos 80, vítima de Covid-19

 

Antônio Silvério de Melo

Nasceu em 02 de outubro de 1936

Falecimento: 27 de abril de 2021, aos 84, após vencer a Covid-19 e perder a sua esposa por conta do vírus.

 

“Eu vou até os cem”. Viver um século era o desejo de Maria Odilia Amaral de Melo. A mineira do município Senhora dos Remédios foi uma pessoa marcante não só para os filhos, mas para todos que tiveram o prazer de conhecê-la. Uma das marcas de Maria Odilia era ser uma boa ouvinte. Ela poderia compartilhar horas e horas do dia para ouvir aqueles que tinham necessidade de falar. Assim, notavam que ela era uma dessas pessoas na vida com quem se pode contar pra tudo, em todos os momentos.

Antônio Silvério de Melo, mineirinho de Desterro do Melo, uma pessoa de felicidade contagiante, de falas marcantes e de presença cativante. Apaixonado pela música, jamais poderia ver uma roda de instrumentos se formando e ficar de fora. Não era nenhum maestro com o apetrecho na mão, mas sentia-se mais feliz ao tocar. A filha Cláudia relembra: “Música para o meu pai era tudo. Se juntasse um grupinho para tocar alguma coisa ele estava ali no meio, mesmo que fosse batendo uma colher na outra. Ele sempre estava lá participando”.

Maria Odilia também deixou sua marca registrada nos bordados que fez ao longo da vida. Foi uma habilidosa bordadeira de ponto cruz, técnica considerada uma preciosidade, um conhecimento transmitido de geração em geração. Seu último trabalho com bordado não foi concluído, e a filha Cláudia o encontrou pela metade, “...ela parou o bordado e deixou a linha na agulha e a agulha passadinha no pano… o último toquezinho dela ficou ali”, toque que será eternizado por meio de uma moldura.

Não havia tempo ruim, “tudo dele virava uma piada”. Era uma pessoa alegre e contagiante. Mas não só isso. Era amoroso, incontestável apaixonado, Antônio sempre achava uma forma de esquentar o coração de quem estava próximo. Dizia ele: “Quando você quiser pensar em mim, quando você sentir saudade de mim, olha pra lua. Por que onde você estiver olhando pra lua, eu também vou estar olhando pra lua daqui e vou estar pensando em você”.

Entre as diversas lembranças de Cláudia estão os momentos em que encontrava a mãe assistindo às missas pela TV. “A minha mãe era muito religiosa. Ela assistia à missa de manhã, de tarde e à noite”. Além disso, a dona Maria Odilia cozinhava extremamente bem, gostava de fazer doces! Os aniversários eram comemorados com um pavê caprichado e no Natal a família era agraciada com canudinhos de doce de leite e casadinhos de goiabada, receitas que a filha dará continuidade, mesmo sem saber se ficarão tão boas quanto as de quem ensinou.

Antônio achou seu jeito de deixar suas marcas naqueles que o acompanhou. Suas frases, suas graças, suas músicas, talvez nem fosse a intenção, mas foram as ferramentas perfeitas para se tornar inesquecível no coração de todos. Até mesmo quem não o conheceu, quando escuta seus causos, não escapa de sentir saudade daquele que não teve a sorte de conhecê-lo.

Os ensinamentos de Maria Odilia foram muitos, um dos maiores foi o gosto pela vida. “A minha mãe gostava muito de viver”, e viverá para além de um século nas memórias afetivas da família Amaral de Melo, donos de uma admiração eterna pela mulher, mãe, tia, avó e tantas outras representações repletas de amor que cultivou em vida.

Por todos os momentos da vida, Antônio sempre acreditou estar protegido pelo melhor dos anjos da guarda. A filha relembra: “Quase todos os dias ele falava: eu tenho um anjo da guarda muito formoso” e, até no seu momento de partida, foi ele quem escolheu ir, contrariando seu anjo protetor. 

Antônio de Melo e Maria Odilia de Melo eram companheiros inseparáveis. Foram pessoas marcantes não só para os filhos, mas para todos que tiveram o privilégio de conhecê-los. Em 2021, completariam 65 anos de casados, mas tiveram o seu enredo interrompido por conta da Covid-19. A filha Cláudia diz que o pai “morreu de amor, não morreu de covid... depois que ele soube da partida da minha mãe, aí ele já não quis ficar mais, ele foi desistindo”. 

Pensar em mãe… absolutamente tudo que você olha, que você toca, que você sente, tem a mãe. Tudo tem a mãe.

Cláudia Amaral, filha de Maria Odília e Antônio

O violão é de 1951. Esse violão é uma referência dele, uma memória.

Cláudia Amaral, filha de Maria Odília e Antônio

Maria Odilia e Antônio de Melo. Fonte: Arquivo pessoal Cláudia Amaral

Cláudia Cristina        

Nascimento: 07 de janeiro de 1976 

Falecimento: 16 de abril de 2021

 

Ela se chama Cláudia Cristina e era minha mãe, uma pessoa alegre, batalhadora, cheia de sonhos, sempre com roupas coloridas e vibrantes, cotidianamente bem maquiada e frequentemente com seus livros de direito a tiracolo. Fisicamente ela partiu, mas sua presença não. Ainda a vejo, ora na mesa onde estudava, na sua cadeira favorita onde tecia os mais belos crochês e tricôs que alguém já viu, ora no fogão, fazendo sua torta de frango que agradava a todos. Seu corpo se foi, mas não há um canto sequer nessa casa que não me faça lembrar dela.

As muitas lembranças com ela sempre me inundam de emoção. Mas não poderia deixar de citar o amor e a ternura com que ela me tratou ao saber da minha homossexualidade. Naquele momento eu conheci o amor mais puro e terno de uma mãe por seu filho e de um filho por sua mãe. Acima de qualquer cultura conservadora e preconceituosa, de qualquer medo de difamação, ela fez prevalecer o amor. E por isso eu  devo minha vida a ela duas vezes. Por Odeir, um filho com saudades.

No ano de 2020 ela estava estudando direito. O grande sonho da vida dela era ser advogada, ela trazia vários livros e ficava estudando, num canto da mesa.

Odeir Neto, filho de Cláudia Cristina

Claudia Cristina. Fonte: Arquivo pessoal Odeir Neto

Vim a perde-la em abril de 2021, num momento que já havia vacinas. O que eu sinto não é a perda de um número. Minha mãe não foi só um número.

Odeir Neto, filho de Cláudia Cristina

Claudia Cristina. Fonte: Arquivo pessoal Odeir Neto

Célio Antônio de Barros Nori

Nascimento: 17 de janeiro de 1950

Falecimento: 17 de maio de 2021

 

Célio Nori era um homem de muitas paixões: a família, a sociologia, o futebol e a comida italiana. Como um típico pai dos anos 80, dedicava-se tanto ao trabalho que aconteceu algumas vezes de chegar em casa atrasado para os parabéns do seu próprio aniversário. Célio era leve e trazia essa leveza para suas relações. 

O olhar atento e carinhoso era marca registrada. Sempre foi o preferido dos cachorros. Nos dias de praia acordava cantarolando e do quarto dos filhos era possível ouvi-lo dar voz a ‘Con Te Partirò’, de Andrea Bocelli. Dizia que “é melhor ficar cinco minutos vermelho do que amarelo pro resto da vida”, porque acreditava na força e importância do diálogo.

Célio Nori tinha tesão pela vida e por tudo que se propunha a fazer. Foi professor, secretário de Esportes e passou, também, pela vereança. Embora tenha sido muitas coisas, não era de se engrandecer pelos feitos de seu trabalho. A criação do Fórum da Cidadania de Santos tem muito das mãos de Célio. Acreditava na coletividade e em uma democracia participativa. Tinha muitos projetos para o futuro e sua agenda cheia é quem denuncia. As páginas ficaram vazias desde sua internação. Mas a memória é eterna. Célio, que era semente, criou raízes, virou árvore e floresceu.

Fonte: Arquivo pessoal Marina Nori

Acho que a primeira vez que eu senti a materialidade da sua partida. Os dias tão cheios de plano, sua escrita a mão.

Marina Nori, filha de Célio Nori

Fonte: Arquivo pessoal Marina Nori

O "quinto filho". O livro que resultou de sua pesquisa de mestrado. Duas paixões: futebol e cidadania. Boleiros da areia, livro de autoria de Celio Nori, no meio de sua bagunçada

(e incompleta) estante de livros.

Marina Nori, filha de Célio Nori

Fonte: Arquivo pessoal Marina Nori

A mesa cheia como você sempre gostou. Mesmo sem vc aqui, sua foto nos lembra que a sua presença é maior do que o vazio que mora aqui.

Marina Nori, filha de Célio Nori

Fonte: Arquivo pessoal Marina Nori

Toda noite, ao arrumar a cama, minha mãe deixa um espaço para sua saudades também se deitar.

Marina Nori, filha de Célio Nori

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Fonte: Arquivo pessoal Marina Nori

Uma parte das cinzas do meu pai foram depositadas junto a uma muda de Ipê foram plantadas em frente a Estação da Cidadania de Santos. Nessa foto, minha filha, sua neta, regando a árvore que você se transformou.

Marina Nori, filha de Célio Nori

Fonte: Arquivo pessoal Marina Nori

No dia da morte, a lembrança da minha mãe, e a significativa frase que ilustra o dia 17/05 "um talento forma-se no silêncio, um caráter na lida do mundo.

Marina Nori, filha de Célio Nori

Fonte: Arquivo pessoal Marina Nori

O plano da segunda dose que não chegou. No dia 15 de abril, meu pai foi internado na UTI em decorrência da Covid-19. Dois dias depois foi entubado, e foi conectado a tubos que ele se desligou da vida.

Marina Nori, filha de Célio Nori

Fonte: Arquivo pessoal Marina Nori

Você sendo presente em muitos lugares. Sua ausência sendo sentida por tantos que conviveram contigo. Na foto, a faixa colocada em frente a Estação da Cidadania, local de lutas e resistência, pensado e cultivado por você durante tantos anos.

Marina Nori, filha de Célio Nori

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