top of page

Um país que silencia sua história

Ausência de Censo impede o conhecimento sobre povos originários

Equipe: Amanna Brito, Anna Luiza Perigo
Loreena Cordeiro, Fernando Paniago

​

O último Censo Demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontou uma extensa população indígena, de cerca de 896.917 pessoas e mais de cinco mil localidades quilombolas. Os considerados povos originários estão presentes desde o início da formação do país e são grandes referências na língua, na arte, na gastronomia, nos costumes, e nos modos de ser do Brasil que conhecemos hoje. Mas apesar da grande relevância desses povos para a história do País, eles sofrem com o descaso do poder público, com o ataque às suas vidas e com o apagamento de suas culturas. Os quilombolas, por exemplo, sequer são citados pelo Censo. 

​

Os indígenas enfrentam os ataques às suas terras, o genocídio de seu povo, a instabilidade de seus direitos que ora avançam, ora regridem. Os povos Quilombolas, por outro lado, ainda aguardam o levantamento sobre a sua população, mas com o adiamento da pesquisa de 2020, ainda não se sabe quando ocorrerá um novo levantamento de dados. 

​

Na pandemia, esse descaso com os povos originários ficou ainda mais evidente. Estima-se que mais de 27 mil indígenas contraíram o vírus da Covid-19, grande parte dos casos transmitidos por garimpeiros e grileiros que invadiram suas terras. Para piorar, houve a suspensão das ações assistenciais da Fundação Nacional do Índio (Funai) desde o início do ano de 2020, entre outras ações governamentais que deixaram a população indígena totalmente desamparada. Em relação aos quilombolas, a taxa de letalidade pelo vírus é mais que o dobro da média nacional, não havendo um plano de combate eficaz para a realidade dessas comunidades. Além disso, a subnotificação, ou seja, a ausência de dados oficiais sobre essas comunidades é algo extremamente grave, pois impede que essa população tenha acesso aos seus direitos.

​

Esta reportagem apresenta o impacto do adiamento do Censo de 2020 para os povos originários, que sofrem ainda mais com a ausência da pesquisa. Diante de um governo que não reconhece a relevância dessas populações na história, ignora (e ainda contribui com) os ataques a esses povos, pensar um espaço de protagonismo que dê voz às suas dores e lutas é fundamental para um futuro mais justo e possível.

​

Uma história escrita através da luta 

Os quilombos são, ainda hoje, uma das maiores referências históricas para entender a pluralidade de nosso país. Começaram a surgir desde o início da escravidão no Brasil como regiões de negação contra a política vigente naquele período. Apesar de muitos enxergarem estes locais apenas como residência do povo negro, os quilombos acolheram, por muito tempo, toda e qualquer pessoa que vivia às margens da sociedade em períodos onde o preconceito, não velado, governava e massacrava outras culturas. 

 

Negros, indígenas e brancos vulneráveis socialmente se reuniram neste espaços de resistência. Os quilombos reúnem uma infinidade de histórias e construções identitárias que representam reflexos históricos do povo brasileiro, conta a pesquisadora Carla Águas, que atualmente realiza seu

pós-doutorado na Unicamp sobre os conhecimentos tradicionais relacionados à água e dedicou o doutorado ao tema dos processos coloniais e seus desdobramentos.

  

Diferente do que popularmente se imagina, os quilombos não existem apenas em regiões remotas, explica Carla. Muitos cresceram, e ainda existem, em regiões urbanas ou bastante próximas às cidades. Isso porque o processo de construção destes locais se deu por diversos modos, seja como  doação de terras, ocupação de espaços públicos, fazendas abandonadas pela falência econômica entre outros meios. De acordo com a Fundação Cultural Palmares, existem cerca de 3.475 comunidades quilombolas no país. 

 

“A abolição da escravatura não apenas foi sendo feita a conta-gotas, arrastando-se, portanto, no decorrer dos anos, até que o sistema escravista perdesse completamente o fôlego, como foi também pensada nesse processo para inviabilizar a ascensão social dos homens e mulheres negras, para que permanecessem na subalternidade”, disse Carla. 

 

Em 1850 foi criada a Lei das Terras, cujo objetivo era organizar a propriedade privada no Brasil. Como negros não possuíam nenhum tipo de posse, de que forma poderiam conquistar um lugar para morar? Para Carla e outros pesquisadores da área, a lei foi pensada justamente porque no mesmo ano a Lei Eusébio de Queiroz proibia o tráfico africano. Logo, o governo sabia que a escravidão chegaria ao fim - e qual o caminho mais conveniente para fazer com que os escravos perecessem na miséria se não tirando-os a chance de terem um lugar para viver? 

 

“A lei das terras foi um mecanismo, como tantos outros, usados para tentar manter as coisas como eram nos tempos coloniais”, explica a pesquisadora. Ainda hoje, ações violentas do governo, os índices de mortalidade de jovens negros no país e a maior incidência destes povos nas favelas contribuem para perpetuar uma violência histórica.  Os quilombos buscam resistir a todas as regras visíveis e invisíveis de um país que vem dizimando o povo negro. 

 

Apesar de um processo doloroso para se alcançar conquistas mínimas, alguns resultados de lutas foram alcançados. Em 1988, com a promulgação da Constituição Federal, movimentos sociais, coletivos de Indígenas e Quilombolas conseguiram o direito coletivo sobre o território, inserido como uma possibilidade na lei, contrastando com o privilégio dado à apropriação individual da terra. O Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) determinou que as chamadas “comunidades remanescentes de quilombos” tinham direito sobre as terras que ocupavam historicamente. Desde então, segundo Carla, vive-se uma luta contínua pela regulamentação dessas áreas.

 

Com essa brecha, os quilombos surgiram aos milhares, mas ainda assim, poucas comunidades foram efetivamente regularizadas. Para Carla, a questão remete diretamente a como governanças conseguem invisibilizar grupos ou situações que existem tão próximas do nosso olhar.

 

Mesmo com a constituição federal, o avanço criminoso e assassino dos detentores de capital faz com que o Brasil colecione tragédias e os povos Quilombolas sejam ainda vistos como um obstáculo para conquistas materiais de determinados grupos.

 

Apesar disso, essas pessoas não assistem às tragédias de modo passivo. Movimentos, redes de solidariedade e embates corajosos contra poderosos avançam em conquistas. Uma delas foi o  direito dos povos Quilombolas de serem incluídos entre grupos prioritários para receberem a vacinação contra a Covid-19. Movimentos como esse iluminam os caminhos do país e tornam possível acreditar que resistir vale a pena. 

1.png

Fonte: IBGE 2019. / Arte: Equipe de produção

Os 500 anos de história com pouco a comemorar

Legenda: Etnia Pataxó (Carmésia, MG) Foto: Flávia Gobato

Os povos Indígenas, também chamados povos originários, são assim denominados por habitarem o país muito antes da colonização europeia. De acordo com Paula Vannucci, socióloga e indigenista que trabalha com os povos Indígenas há 35 anos, não é possível saber ao certo de onde os povos vieram. Contudo, algumas teorias sobre os fluxos migratórios ocorridos há milhares de anos indicam que eles se originaram de povos da Ásia. 

 

Estudos apontam que no início do século XVI  a população indígena era composta por cerca de 2 a 4 milhões de pessoas. O termo “índio” foi popularizado devido a um equívoco dos europeus, que imaginavam ter alcançado a Índia quando aqui chegaram. Entre os povos Indígenas este termo já foi refutado. 

 

Hoje, os povos Indígenas, assim como os Quilombolas, estão espalhados por todo o território brasileiro e em regiões vizinhas ao nosso país. De acordo com o último Censo, realizado em 2010, essa população soma em torno de 896.917. 

 

Segundo Paula, atualmente há no território nacional 305 povos diferentes que totalizam mais de 270 línguas distintas. A maior parte deles estão distribuídos em milhares de aldeias, situadas nas 724 Terras Indígenas (TIs), localizadas de Norte a Sul no território nacional. Temos, ainda, o registro de 70 grupos de índios isolados na Amazônia Brasileira, de acordo com dados da Funai. Além disso, a grande maioria dos povos Indígenas no Brasil vivem em terras coletivas, garantidas pela Constituição Federal de 1988.

 

Este processo de conquista da terra pelo Estado é permeado por grandes problemáticas. Ainda que muitas terras estejam demarcadas e contem com registros em cartórios, muitas outras estão em fase de reconhecimento. E há ainda uma quantidade expressiva sem sequer regularização. 

 

A problemática da demarcação de terras ocorre porque o reconhecimento de áreas indígenas ainda é muito questionado por forças e interesses. “Interesse políticos e econômicos, que visam a exploração e uso desses territórios, têm determinado vários conflitos que esses povos hoje vivem”, ressalta Paula. 

 

Um exemplo desses conflitos é o projeto de lei 490, que questiona o processo constitucional para garantir o direito desses povos às suas terras, entre outras outras questões. O projeto foi proposto pela bancada ruralista e “tenta mudar as regras da constituição e, oportunamente, neste triste momento pandêmico, onde todo o foco da população brasileira está voltado para a crise sanitária, os interessados tentam “passar a boiada” e, de preferência, na surdina”, alega Paula. Para a sociológica, caso não haja uma mobilização de apoio e sensibilização eficiente da sociedade brasileira e demais instituições, há grandes chances da PL ser aprovada.

 

Apesar de todos estes processos que invisibilizam e dificultam a vivência dos povos Indígenas nas terras que são suas por direito, conquistas também foram alcançadas a partir da pressão dos movimentos indígenas, indigenistas e de outras organizações sociais de defesa dos direitos desses povos.

 

Paula explica que a resistência e o protagonismo Indígena passam a ter  maior visibilidade nas conquistas políticas e de ações em diferentes campos, como: na  educação, onde garantem uma Educação Escolar Indígena Específica e Diferenciada;  na saúde, com a implantação dos Distritos Sanitários Especial de Saúde Indígena (DSEIs), um subsistema do SUS para atenção à saúde indígena; na questão ambiental, com a construção da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas

(PNGATI), entre outras. 

 

Ainda assim, as definições orçamentárias, jurídicas e operacionais existentes não são suficientes e estão muito mais voltadas para princípios do que para a consolidação de políticas públicas que beneficiem os povos originários.  “Ainda é necessário muito caminhar para a consolidação das mesmas, com exceção à saúde indígena, que se configura um pouco mais avançada do que as demais áreas”, afirma Paula. 

 

Para a sociológica, considerando o atual cenário governamental do país, esse quadro se agrava e aponta uma triste realidade de desmanche das poucas conquistas até aqui alcançadas. O presidente Jair Messias Bolsonaro (sem partido) realizou toda sua campanha apoiada em pautas que excluem os povos originários. Exemplo disso ocorreu, quando anunciou que no Brasil não haveria mais nenhuma terra demarcada, promessa que vem cumprindo ao longo do governo. “Além disso, promove e incentiva a paralisação da demarcação das terras indígenas; a exploração mineral  e a expansão do agronegócio nesses territórios;  a promoção da equivocada e “torta” ideia de que os índios devam  ser integrados à sociedade nacional. Ideia essa já ultrapassada, pois deslegitima a cultura de tais povos e atenua preconceitos já existentes à medida em que posiciona essas culturas como sendo atrasadas e que precisam se aproximar da “cultura nacional”, explica.

 

Para Paula, as adversidades, a falta de empatia do Estado e da população em geral fazem com que, mesmo passados mais de 500 anos que esses povos habitam as terras nacionais, ainda haja pouco o que se comemorar.

Fonte: IBGE 2019. / Arte: Equipe de produção

Censo possibilitaria enxergar povos originários como parte de um Brasil diverso

Fotos: Unsplash/Wikimedia Commons

O Censo Demográfico realizado pelo IBGE constitui toda a base de informações relativas às condições de vida da população brasileira em toda a sua extensão territorial. A base de dados é importante para quantificar a população e propor ações e políticas públicas, de acordo com dados recolhidos exclusivamente neste levantamento. A pesquisa é aplicada a cada dez anos, mas a última aplicação do Censo aconteceu no ano de 2010.

 

A economista Wasmália Bivar foi presidenta do IBGE no período de 2011 a 2016 e reconhece que o Censo é essencial para se pensar a realidade brasileira atual e também para fazer projeções futuras. E quando se trata de um contexto pandêmico, no qual os números mudam rapidamente, pesquisas como essas se tornam ainda mais necessárias. “O censo então é fundamental, até porque o Brasil está vivendo uma transição demográfica importante e acelerada e nós não sabemos de que maneira isso vai afetar as estimativas e projeções que temos hoje”, afirma Wasmália.

 

Em relação aos povos originários, indígenas e quilombolas, o Censo Demográfico do IBGE cumpre um importante papel de dar visibilidade às suas especificidades. Demonstrar a diversidade cultural dos povos originários e estimar a sua população são alguns dos aspectos levantados pelo Censo. Mas, talvez, o mais relevante deles seja permitir um olhar mais atento às suas necessidades e, a partir disso, possibilitar a criação de políticas públicas que atendam às suas particularidades. Segundo Wasmália, “O Censo é, antes de tudo, um instrumento de reivindicação nas mãos dessas populações”.

O Censo é, antes de tudo, um instrumento de reivindicação nas mãos dessas populações.

Wasmália Bivar

No que se refere aos povos Indígenas, a pesquisa realizada pelo Censo é feita por meio de duas abordagens. A primeira utiliza um questionário básico que pergunta sobre raça e cor, e que é direcionada a todos os brasileiros. A segunda se refere à terra indígena, que que foi demarcada institucionalmente. Então se dimensiona a população indígena que está em terras destinadas a estes povos  e também aquela que está fora dessa delimitação, residindo, por exemplo, em grandes centros. 

​

Mudanças recentes na abordagem dos povos Indígenas contribuíram para a visualização da sua extensa diversidade. No ano de 2010, por exemplo, foi incluída a pergunta sobre etnia e língua falada, que surpreendeu ao revelar a quantidade e variedade cultural dessa população.

​

Já quando se trata das comunidades quilombolas, a abordagem é mais complexa. O Censo apenas leva em conta quilombos provenientes de terras demarcadas, e poucas terras quilombolas estão regulamentadas, já que o processo de regulamentação das terras desta população é mais recente e vem ocorrendo de maneira lenta. “O IBGE levanta e consegue delimitar as áreas quilombolas desde que elas estejam demarcadas, porque o instituto não reúne as competências necessárias para a demarcação de terras”, afirma Wasmália. Assim, os quilombolas que estão em terras ainda não demarcadas são abordados apenas na fase da pesquisa que se destina a descobrir raça/cor de determinado grupo e região, não sendo tipificados no Censo como grupos quilombolas. Havia a previsão de que eles fossem tipificados de maneira mais específica no Censo de 2020, o que não ocorreu.

​

A antiga Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial havia iniciado um trabalho com o IBGE para identificar populações relativamente isoladas, distantes de centros urbanos e com elevada população negra. Este trabalho buscava reconhecer se estas populações eram, mesmo sem saber, originadas de um quilombo. Entretanto, com a incorporação da Secretaria ao Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, em 2015, esse trabalho foi se dissolvendo. 

​

Dessa forma, a abordagem referente aos grupos quilombolas no Censo necessita de um trabalho anterior de demarcação de suas terras, que pode e deve ser financiado pelo poder público,. “O Censo vai perguntar cor e raça de todos, então você consegue descobrir concentrações populacionais com determinadas características. Mas você não consegue dizer se aquilo ali é um quilombo ou se é oriundo de uma comunidade quilombola”, comenta Wasmália.

​

O último Censo, realizado em 2010, apresenta informações defasadas, já que a realidade brasileira mudou muito nesses últimos onze anos. Entretanto, a pesquisa que deveria ter sido realizada em 2020 ainda não foi feita e tem previsão para acontecer apenas em 2022. Para as comunidades tradicionais, o impacto da falta de Censo tende a ser maior por conta da falta de amparo do poder público a esses grupos. 

​

O economista Agmar Lima, conhecido como Agmar do Quilombo, é morador do quilombo da Palmeirinha, localizado na cidade de Pedras de Maria da Cruz (norte de Minas Gerais), onde exerceu dois mandatos como vereador. Ele conta que para a realização da vacinação prioritária do COVID-19 para quilombolas, foi preciso que ele caminhasse de porta em porta em sua comunidade para contar a quantidade de moradores. Isso gerou uma grande confusão, pois os dados foram imprecisos, o que deixou algumas pessoas de fora do plano de imunização.

Agmar Lima, morador do Quilombo Palmeirinha
00:00 / 00:31
Legenda: “Agmar no Quilombo da Palmeirinha” (Pedras de Maria da Cruz, MG). Foto: Arquivo Pessoal de Agmar Lima.

A falta de dados se une à falta de legitimação da comunidade quilombola, que muitas vezes não é reconhecida pela população ao redor. Quando não se reconhece um povo, não se reconhece também as suas dores, a sua história de luta e opressão. A partir disso, a população passa a ter dificuldade de aceitar e respeitar políticas públicas que busquem reduzir as desigualdades, priorizando povos oprimidos historicamente. No caso da vacinação contra o COVID-19, a indicação dos povos originários como prioridade gerou forte incômodo. Agmar afirma que esse preconceito é grande e que decorre da desinformação:

Agmar Lima, morador do Quilombo Palmeirinha
00:00 / 00:40

A comunidade da Palmeirinha teve muita dificuldade também para se cadastrar em programas sociais, por não possuírem documentos que comprovassem a posse da terra. Tudo isso por conta da gestão precária do poder público, que pouco contribuiu para a demarcação de terras nos quilombos. Hoje, após muita luta, Agmar se orgulha de ter conseguido o registro das terras de sua comunidade, ainda que sem o apoio das autoridades.

Legenda: Moradores reunidos no Quilombo da Palmeirinha. Foto: Arquivo Pessoal de Agmar Lima.

Saúde desses povos depende de políticas públicas

A professora Dra. Cristina Dias, do departamento de Antropologia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), tem como um dos objetos de estudo as pesquisas etnográficas, que se utilizam da coleta de dados e da observação para compreender um determinado grupo social. Em  entrevista à Revista Curinga, a professora explica que a partir da década de 1970 há importantes trabalhos na Antropologia que problematizam a experiência da saúde e da doença, de ordem cultural e social. 

​

Cristina estudou as abordagens sobre a participação de profissionais de saúde nas aldeias Indígenas e postos de saúde localizados no Brasil, para entender melhor como era o cotidiano do processo pautado na experiência saúde-doença no Subsistema de Atenção à Saúde Indígena SasiSUS, vinculado ao Sistema Único de Saúde (SUS).  A etnografia da área de saúde, em especial a saúde dos povos Originários, é compreendida principalmente após a Constituição de 1988, que garante direitos Originários sobre os modos de vida. 

​

Cristina relembra a Constituição de 1988, que assegura, por meio do art. 231, os direitos dos povos Indígenas, em especial, os modos de reprodução cultural e os modos de vida. “A Lei Arouca também foi importante para regulamentar os processos que deram origem ao Subsistema de Saúde Indígena e a Política Nacional de Assistência à Saúde dos povos Originários que data do ano de 2000”, explica. 

​

O Distrito Sanitário Especial Indígena é a unidade de gerenciamento descentralizada do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena. De acordo com Ministério da Saúde, o órgão é orientado para o pertencimento etno-cultural dinâmico, geográfico, populacional e administrativo bem estruturado e contempla o conjunto de atividades técnicas que se materializam em estratégias qualificadas de atenção à saúde dos povos Indígenas. Promove a reordenação da rede de saúde e das práticas sanitárias, por meio da autonomia administrativa, orçamentária e financeira. 

​

“Os Distritos Sanitários são, digamos assim, a expressão material e territorial da ideia do Subsistema ser um braço do SUS para garantir a atenção primária à saúde dos povos Indígenas no Brasil”, afirma a professora Cristina Dias. A legislação busca garantir a atenção primária para saúde dos Indígenas no país, com infraestruturas que atendam a demandas específicas dessas culturas, ou seja, de lugares, tempos e sociedades que habitam o território de maneira particular. É uma atenção diferenciada de respeito à diversidade cultural. 

 

De acordo com Cristina, o Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena (SIASI) é um sistema deficitário porque grande parte das informações que estão ali não são públicas. “Para além do Censo, no caso dos povos Indígenas, existe uma subnotificação muitas vezes complexificada pela categoria dos pardos, processos de discriminação locais que tendem a invisibilizar identidades Indígenas. Ou seja, existe esse debate sobre a produção do Censo em relação a processos muito discriminatórios. Como fazemos para ter uma precisão na produção desses dados?”, indaga. Esse é um dos principais questionamentos que ela faz do ponto de vista de políticas de Censo.

Cristina Dias, professora da UFJF
00:00 / 01:02

Cristina Dias relembra os principais avanços em políticas que tiveram impacto significativo na vida dos Povos Indígenas, sobretudo a Constituição de 1988. O documento reconhece o direito à saúde, especialmente o atendimento que considera a valorização e o pertencimento étnico-cultural. Além disso, o documento inclui estes povos na Lei Orgânica da Saúde e regulamenta políticas nacionais de assistência à saúde dessa população, publicadas em 2002. 

​

É nessa regulamentação que são elaboradas as premissas do atendimento diferenciado. Por meio dela também se torna possível organizar serviços de saúde para a atenção primária por meio dos Distritos Sanitários - localizados em pontos estratégicos para facilitar no acolhimento à saúde dos Povos Indígenas. Outro avanço dos Distritos é  facilitar esse atendimento rotineiro de saúde por meio, no caso, de um posto de saúde que atenda a essas demandas. Entretanto, de acordo com Cristina, uma das principais lutas dos povos Indígenas no contexto urbano é o atendimento no Subsistema de Saúde Indígena para terem acesso às premissas de assistência diferenciada. “Muitas vezes vejo denúncias acontecendo por parte de lideranças indígenas, alegando que os atendimentos com esses princípios são negados no ambiente urbano, argumenta. 

​

O cenário político da pandemia tornou-se ainda mais desafiador para os povos Indígenas, sobretudo com a invasão de territórios e o garimpo ilegal, que aumentaram de forma significativa durante o período. “Nesses cenários se soma a crise política, então você tem um governo que não se coloca a favor de uma pauta Indígena. Todas essas agressões de direitos territoriais vêm acontecendo no contexto pandêmico. A proporcionalidade de mortes pelo COVID-19 atende a critérios da desigualdade social”, explica. 

​

Os povos Originários, em sua magnitude e particularidades culturais, foram historicamente prejudicados dada a ausência de dados sobre essa população. O resultado tem sido a precariedade de políticas públicas que não trazem, de fato, avanços para os povos Indígenas. Quando falamos da crise política e sanitária que eles estão vivendo, principalmente a saúde, é ainda maior a situação de abandono. A falta de um Censo é algo que atinge o coração do processo político democrático, que impacta na produção de políticas que sejam calcadas nas informações fundamentais que o Censo ajuda a obter”, explica. O IBGE é um patrimônio brasileiro. 

 

Indígenas, a Covid-19 e o retrato de uma devastação

Um dos maiores desafios para os indígenas durante a pandemia da Covid-19 é o monitoramento da doença entre eles. Como muitos povos se encontram fora de áreas homologadas, as notificações oficiais não conseguem precisar exatamente a extensão dos impactos da enfermidade.

​

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) é uma das frentes independentes da quantificação e divulgação dos casos subnotificados de contaminação indígena pela Covid-19. A Secretaria Especial de Saúde Indígena, órgão responsável por essa contabilização, divulga dados que dizem respeito apenas às terras homologadas. Entre os desafios dos povos originários frente à pandemia estão o racismo institucional e a relativização da doença. Diversos hospitais realizam o registro de indígenas que vivem em contexto urbano como pardos, o que dificulta a contabilização da doença neste grupo de forma eficaz.

​

De acordo com a APIB, os indígenas são mais suscetíveis a epidemias devido às suas condições socioeconômicas e de saúde, que provocam situações de maior vulnerabilidade. Destaca-se, por exemplo, o fato de que muitos indígenas vivem em casas coletivas e, consequentemente, compartilham diversos utensílios, o que facilita o contágio da Covid-19. 

​

No total, estima-se que mais de 50% dos povos  foram atingidos diretamente pela pandemia, e mais de 27 mil indígenas foram contaminados pelo vírus. Até a publicação desta reportagem são 57.321 casos confirmados de infecção pelo coronavírus entre os indígenas, com 1.142 mortes e 163 etnias afetadas.

Fonte:: Site Fotos Públicas.  Fotógrafo: Bruno Cecim

Atualmente, as políticas públicas, que deveriam amparar os indígenas, promovem a retirada de seus direitos. Exemplo disso é a situação da imunização contra a COVID-19 dos indígenas na cidade de Viçosa (MG). Suê Jani Puri, de etnia Puri, afirmou à Curinga que em reunião realizada na Câmara Municipal, autoridades negaram a presença dos povos originários no município e que, desta forma, as vacinas seriam encaminhadas a outros grupos prioritários. O poder público chegou até mesmo a duvidar das reivindicações dessas comunidades, por acreditar que o pedido de reconhecimento era uma forma de “furar fila”.

​

A partir da perspectiva da tomada de terras, de que todo território brasileiro é terra indígena, o Grupo de Estudos Indígenas e de Povos Originários da UFV (GEIPÓ) criou o movimento Frente Nacional de Reivindicação à Vacina (FREVINA). A mobilização consiste em clamar pela imunização de vacinas contra a Covid-19 para os povos Indígenas que vivem em contexto urbano.

Suê Jani Puri
00:00 / 01:57

Quilombolas entre os mais atingidos pela Covid-19 

Os agravamentos que a Covid-19 potencializaram nas comunidades quilombolas trazem à tona o abandono e descaso com essa população por parte do Estado não só durante a pandemia, mas ao longo da História, com o constante processo de pagamento da identidade dos povos Quilombolas. “Porque é a forma que os quilombos estavam antes da pandemia. É o racismo que estrutura e banca as exclusões, é o racismo que materializa as desigualdades e fez com que, ao chegar a pandemia, os quilombos já estavam em situação desfavorável. Ou seja, a pandemia deu potência para aquilo que já estava”, relata Givânia Maria, educadora quilombola. Além disso, ela acredita que existem dois modelos operados pelo atual governo de extrema-direita, isto é, o “Brasil, quando não mata pessoas negras, deixa morrer”, fazendo analogia à política de extermínio adotada pela administração de Bolsonaro. Um exemplo é  a falta de ação do governo para compra de vacinas e políticas de enfrentamento da crise sanitária. 

​

Para Givânia, todas essas consequências estão atreladas diretamente ao racismo estrutural na sociedade, e o caminho oposto é a adoção de políticas antirracistas. “Ou nós vamos continuar cada vez mais aprofundando a desigualdade, tendo os negros nesta base; da pobreza, da miséria e da fome”, argumenta. O racismo histórico estrutural mantém comunidades negras rurais excluídas do campo de investimentos e desenvolvimentos devido à falta de políticas públicas que pensem no atendimento humanitário.

​

Ademais, segundo a Plataforma Observatório da COVID-19 nos Quilombos, da Articulação das Comunidades Negras e Rurais Quilombolas (Conac), a subnotificação se tornou um tema central na abordagem da pandemia da Covid-19 no Brasil, as comunidades quilombolas estão em uma posição extrema, mesmo se comparada à das populações indígenas, pelo simples fato de não existirem dados oficiais sobre elas. 

​

Para Gilvânia, o corte de 92% no orçamento do Censo Demográfico é uma política de escuridão. “É uma política de apagamento de informações importantes, e ninguém faz políticas públicas sem dados. Então, esse é o Brasil que estamos vivendo. Eu ainda tenho esperanças de sair desse emaranhado tão complexo que estamos mergulhados”, afirma.  

​

Os Povos Tradicionais, a exemplo dos Quilombolas, estão cada vez mais vulneráveis às consequências do novo coronavírus, principalmente diante da falta de demarcação das terras, ampliando o contágio da doença e os impasses para um isolamento digno e seguro. Além disso, os problemas de ordem socioeconômica ocasionados pela falta de água potável evidenciam, mais uma vez, a dificuldade dos povos Quilombolas para traçar um plano emergencial que assegure um isolamento conforme as recomendações feitas pelos órgãos de saúde. Neste sentido, a taxa de letalidade por COVID-19 entre Quilombolas é o dobro da média nacional brasileira, evidenciando, mais uma vez, a negação de um plano de combate à pandemia nas comunidades quilombolas, por parte do governo federal. 

​

Dessa forma, é possível perceber o estrangulamento, em diversos sentidos, ocasionado pela pandemia, principalmente pela ausência de dados epidemiológicos, além da grande dificuldade no acesso à realização de exames em pessoas que apresentem algum sintoma. Conforme o Conac, os dados atualizados em 15 de julho de 2021 sobre o índice de infecções e mortes dos quilombos relacionadas ao coronavírus apontam que o total de casos chega a 5530 infectados e 290 mortes devido às complicações do vírus.  

Givânia Maria educadora quilombola, do território de Conceição das Crioulas  Foto: Tatiana Reis

Educação quilombola sofre com educação tardia

“Depois que me formei, ainda na graduação, é que eu consigo entender e transformar o meu ofício de professora em uma ferramenta de luta política. A educação é o caminho e, por isso, investimos tanto.”, afirma Givânia. Ela é uma das coordenadoras da Conac, quilombola de Conceição das Crioulas, localizada no Sertão central do município de Salgueiro (PE). A pedagogia Crioula é uma estratégia de luta para compreensão do processo de afirmação da identidade quilombola, por meio do pertencimento étnico e da memória permanente para construção de uma educação emancipadora e antirracista.

 

A comunidade quilombola, com pouco mais de 700 famílias vivendo de atividades econômicas, como a agricultura familiar, a pecuária e, principalmente, a produção de artesanato em fibras naturais, palha e barro, é marcada pela trajetória de combate ao racismo ambiental e efetivação do direito ao território quilombola. O impacto do racismo na ausência de políticas públicas efetivas no que diz respeito aos direitos étnicos e culturais desse povoado, sobretudo a negação à educação de qualidade e pública, evidencia o racismo estrutural presente no modelo de educação, em especial os currículos escolares. “Nunca existiram políticas públicas que entendessem o porquê da existência dos povos quilombolas, ou seja, quando começaram a surgir foram por intermédio de muita ocupação e, como diz Givânia, fechando a estrada.

Quilombo Conceição das Crioulas - um lugar de lutas, histórias e memórias  Foto: Diêgo Oliveira

“Lá em Conceição das Crioulas as coisas sempre chegam por último, porque lá é o lugar dos pretos. O ensino fundamental chegou depois, o ensino médio chegou depois, a energia chegou depois, tudo foi conquistado com muita luta pela comunidade”, afirma. O direito à reconquista de proteção do território de Conceição das Crioulas é um movimento marcado pela resistência, buscando o modelo educacional quilombola como referência nacional para fortalecimento da identidade quilombola.

 

Givânia rompeu com o sistema de exclusão provado pelo racismo por ser uma mulher negra e quilombola a ocupar seu espaço na educação, formando-se no curso de letras em 1995, pela Pastoral da Juventude. Segundo ela, “dar ao nosso povo aquilo que foi tirado deles, que é a educação. Com a oportunidade de administrar uma escola, Givânia propôs debates sobre a negação de direitos, possibilidades, identidades e, principalmente, sobre a história dos povos Quilombolas, buscando transformar o currículo escolar e incentivar o protagonismo de mulheres. A experiência educacional quilombola foi ganhando potência e, em  2012, o Conselho de Nacional de Educação define as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Escolar Quilombola na Educação Básica.

​

De acordo com Givânia, ela está coordenando um estudo que dialoga sobre a falta de dados do Censo Escolar - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), relacionado aos povos Quilombolas. “É um absurdo o levantamento de dados que já se consegue ter, embora sejam prejudicados pelos outros dados do Censo Demográfico, que infelizmente a gente não teve”, argumenta. A educação quilombola está abaixo de toda e qualquer média do Brasil. “Nós tivemos em 2019 cerca de 302 mil matrículas no Ensino Fundamental, e tivemos apenas 26 mil matrículas no Ensino Médio, ou seja, nossos estudantes Quilombolas não passam do Ensino Fundamental. O censo seria importante para avaliarmos isso”, conclui. 

​

Universidade ainda não está preparada para receber estudantes indígenas 

O processo de reconhecimento e autodeclaração é complexo e varia para cada indivíduo, assim como a jornada em busca da declaração emitida pela Fundação Nacional do Índio (Funai). A indígena Heloísa Puri, da etnia Puri, afirma que “A realidade de uma federal ainda estava muito distante para mim”, e que para ser inserida na universidade a partir do sistema de cotas, enfrentou diversas dificuldades. 

​

A declaração da FUNAI foi obtida a partir do reconhecimento da banca de heteroidentificação, que orienta a inserção na universidade pelo sistema de cotas. Durante a reunião para retirada da documentação, Heloísa se viu diante de situações constrangedoras: “A banca não é preparada para reconhecer um indígena”. A menina foi interrogada a respeito de onde vinha, do porquê do pedido, da escolha da universidade e até mesmo de sua etnia

Heloísa Puri
00:00 / 00:53

Fotos: Wikimedia Commons

Além disso, não são apenas os estudantes que realizam práticas ofensivas e preconceituosas. Heloísa conta que houve uma situação em que seu próprio professor, ao se referir aos indígenas, utilizou termos que caíram em desuso, como índio, tribo, etc, o que revela um desconhecimento sobre a cultura dos povos originários.

​

De acordo com Ademario Ribeiro, pedagogo indígena formado pela Universidade Federal de Ouro Preto, “A lógica dos invasores escreveu uma ‘história’ sobre os ‘índios’”. O indígena acredita que é necessário escrever as narrativas desses povos e que a história de todos os povos originários deve ser contada: “Não falamos só Tupi, Deus não é só Tupã, não dançamos só Toré, não só andamos pelados, nem só usamos arco e flechas – somos profissionais em todas as áreas do conhecimento, etc.”

 

Dados evitariam o apagamento étnico-cultural

A complexidade da ausência do Censo Demográfico 2021, em especial para os povos originários, se dá devido ao corte de gastos de 96% aprovado pelo governo de Jair Bolsonaro. O apagamento étnico de dados é baseado em uma política que nega os principais direitos de existência para os povos Indígenas e Quilombolas. Podemos citar, principalmente, a não garantia à demarcação de terras e, consequentemente, o garimpo ilegal, a dificuldade de acesso à saúde pública de qualidade e a negação de uma educação que entenda o pertencimento étnico-cultural. 

​

Além disso, na atual conjuntura da pandemia, é visível a ausência de políticas assertivas no combate à Covid-19, colocando os povos Originários em extrema vulnerabilidade social e econômica. Por fim, o alto índice do número de casos e mortes provado pelo vírus evidencia o descaso por parte do governo federal com a manutenção das vidas e da memória desses povos ancestrais que fundaram o Brasil. 

bottom of page