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Adaptar

Na pandemia e na dor, a lida que segue

No cenário trabalhista do Brasil pandêmico, angústia e desemprego disputam o protagonismo

Equipe: Giulia Matteoli,

Júlia Souza e Mylena Gonçalves 

Em 20 de março de 2020, nove dias após a Organização Mundial da Saúde decretar a pandemia do novo coronavírus, o Governo brasileiro emitiu orientações por meio da Medida Provisória 926/20, que indicou os serviços considerados essenciais para o abastecimento, a sobrevivência e a segurança da população durante o período de calamidade pública. No estado de emergência, entretanto, a instabilidade relativa às questões financeiras e psicoemocionais, às relações profissionais e às preocupações sanitárias, moldaram diferentes problemas em um novo contexto. 

Desde o início da pandemia, as taxas de desemprego e o aumento dos preços dos alimentos contribuíram muito para o avanço das adversidades sobre a população. O número de pessoas em estado de desalento bateu recorde em 2020, sendo 16,1% maior que em 2019. Entre maio e setembro do ano passado, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 15,3 milhões de brasileiros desistiram de procurar emprego devido ao contexto de crise sanitária e econômica. A professora do Departamento de Ciências Administrativas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Julice Salvagni, Doutora em Sociologia, explica que "sem ter uma perspectiva de mudança desse cenário a curto ou médio prazo, vão se criando problemas maiores no sentido da pessoa ter cada vez mais dificuldade de se inserir. E, daqui a pouco, o que a gente chama de estágio de desalento: [a pessoa] sequer consegue buscar emprego novamente", pontua.

Gráfico Desemprego no Brasil 2020 - Fina

"Uberização" e inabilidade governamental

A lógica de empresas como a Uber e o iFood permite a oferta de serviço sob  demanda, sem vínculo empregatício com a mão de obra e a tradicional hierarquia empresarial. Nesse sentido, qualquer pessoa pode se tornar empreendedor e/ou consumidor, e a plataforma serve de intermediário entre os dois. Sob uma ótica do direito trabalhista, por trás da ideia de empreendedorismo, como a aplicada pela Uber, por exemplo, no tratamento dos motoristas como colaboradores, existe também uma precarização das relações de trabalho.

Foto:s Lincon Zarbietti

Sem estrutura ou respaldo das grandes corporações durante a pandemia, entregadores arriscam a saúde para manter a sociedade isolada e em funcionamento.

Quando se viu sem outras alternativas e em isolamento, a advogada Janaína Soares, 39, decidiu trabalhar como Uber em janeiro de 2021. Entretanto, ao final de três meses e um investimento de 400 reais, percebeu que mesmo trabalhando 12 horas por dia tinha um retorno muito baixo. Ela diz que trabalhar como colaboradora da Uber é uma informalidade romantizada, principalmente pelas condições de trabalho e por todas as despesas serem do motorista. Ao buscar outras alternativas decidiu se voltar para o empreendedorismo e a confeitaria caseira.

A lógica de empresas como a Uber e o iFood permite a oferta de serviço sob  demanda, sem vínculo empregatício com a mão de obra e a tradicional hierarquia empresarial. Nesse sentido, qualquer pessoa pode se tornar empreendedor e/ou consumidor, e a plataforma serve de intermediário entre os dois. Sob uma ótica do direito trabalhista, por trás da ideia de empreendedorismo, como a aplicada pela Uber, por exemplo, no tratamento dos motoristas como colaboradores, existe também uma precarização das relações de trabalho.

 

Quando se viu sem outras alternativas e em isolamento, a advogada Janaína Soares, 39, decidiu trabalhar como Uber em janeiro de 2021. Entretanto, ao final de três meses e um investimento de 400 reais, percebeu que mesmo trabalhando 12 horas por dia tinha um retorno muito baixo. Ela diz que trabalhar como colaboradora da Uber é uma informalidade romantizada, principalmente pelas condições de trabalho e por todas as despesas serem do motorista. Ao buscar outras alternativas decidiu se voltar para o empreendedorismo e a confeitaria caseira.

Fonte: Arquivo pessoal

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Janaína Bretas, 39, recorreu ao trabalho de uber para se sustentar durante a pandemia

Janaína destacou: “O direito trabalhista não tem nenhum, na verdade... a gente recebe uma pequena porcentagem de acordo com a quilometragem que é rodada... E essa questão de prejuízos materiais, caso algum passageiro entrasse no carro e danificasse o carro, se não fosse o meu seguro que eu arco do meu bolso, sozinha, eles não se responsabilizariam, e por isso a inviabilidade do trabalho, além de ser muito mal remunerado”. Além disso, explica: “E eles colocam metas pra gente alcançar, no aplicativo você tem taxa de desempenho, tem avaliação dos passageiros… então tudo isso interfere na sua produtividade, nas chamadas que são feitas para você. A gente tem que cumprir direitinho, tratar muito bem os clientes, ser educado, dirigir com cuidado, ter todos os cuidados necessários e, em contrapartida, nós não vemos nada do aplicativo.”

Cópia de Índices Recordes no Brasil em 2

Para a professora Julice, da UFRGS, a ascensão da informalidade está relacionada com a Reforma Trabalhista de 2017, do governo do ex-presidente Temer, que contribuiu para o enfraquecimento de vários postos de trabalho, diminuição de salários e redução de uma série de benefícios e seguranças ao trabalhador. Ela diz que no período pandêmico, a regulamentação para o trabalho informal continua sem alterações, o trabalhador não recebe garantia de acesso a direitos como o auxílio-doença, seguro desemprego, Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), férias ou 13º salário, presentes no vínculo formal de trabalho. "Cabe destacar todo esse contexto de pandemia, que vem assolando de forma muito brutal a classe trabalhadora em diferentes aspectos e atinge em primeiro lugar as pessoas que não têm segurança no trabalho", ressalta a professora. "Ainda mais agora que se teve um período de finalização emergencial, são pessoas que não têm nenhuma proteção laboral, e se não forem assistidas por Programas de Governo ficam à própria sorte”, completa.

Fonte: Arquivo pessoal

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Cabe destacar todo esse contexto de pandemia, que vem assolando de forma muito brutal a classe trabalhadora

Julice Salvagni

Professora do Departamento de Ciências Administrativas da UFRGS

Julice Salvagni, 37, destaca as problemáticas da informalidade do trabalho

As propostas governamentais que vieram para estabelecer uma segurança alimentar e financeira para a população durante a pandemia não contemplaram os grupos mais vulneráveis. O desemprego no Brasil continua em crescimento, paralelos ao desespero por amparo. Assim, os cenários socioeconômico e trabalhista brasileiro encontram-se em colapso e, tendo em vista a conjuntura atual, não há previsões para melhora.

O economista e mestrando em Economia Aplicada pela Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), Guilherme Barbosa, 22, explica a relação dos índices de trabalhadores informais no Brasil com a queda na qualidade das condições de trabalho e o aumento do desamparo legal: "a precarização do trabalho, o empobrecimento da população, a incapacidade do Governo [de gerir a situação] é prejuízo para ele mesmo [o Governo]… Trabalhadores informais tendem a trabalhar mais e receber menos, em condições muitas vezes desumanas”. Além disso, tal situação pode levar pessoas para atividades em condição “de ilegalidade por meio da prostituição, tráfico de drogas, pirataria, etc.”, completa Guilherme. “Fora que o Governo Federal também perde com isso, uma vez que a receita advinda pela tributação do trabalho é perdida dentro do mercado informal”, conclui.

No entanto, o IBGE revela que a informalidade no trabalho caiu de 41,1% em 2019 para 38,7% em 2020, totalizando 39,9 milhões de brasileiros ocupados sem CNPJ ou carteira assinada. Ao mesmo tempo, o ano da pandemia também assistiu ao recorde de mais de 2,6 milhões de formalizações por meio do registro do Microempreendedor Individual (MEI). O Brasil atualmente reúne mais de 11,3 milhões de MEIs, segundo o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), o maior número registrado até então. A analista da pesquisa, Adriana Beringuy, segundo entrevista concedida ao Portal UOL em janeiro de 2021, explica que "a queda da informalidade não está relacionada a mais trabalhadores formais no mercado, mas sim ao fato de trabalhadores informais terem perdido sua ocupação ao longo do ano. Com menos trabalhadores informais na composição de ocupados, a taxa de informalidade diminuiu". Os trabalhadores informais foram os primeiros atingidos pelos efeitos da pandemia, tanto pela exposição à contaminação em suas atividades, quanto pela interrupção destas pelas medidas de restrição no país. 

Assim, o uso de aplicativos e outras tecnologias voltadas à prestação de serviços (como a Uber, Rappi, iFood etc) cresceu como a resposta para uma carência, mas a grande maioria dessas plataformas não oferece condições de trabalho adequadas, característica que atrela os profissionais a uma situação de informalidade. Na quase totalidade dos casos, não há resguardo algum para esses profissionais, e, tampouco, responsabilização das empresas para com eles. 

O cenário econômico brasileiro encontra-se em crise, e a previsão é de que esse quadro se agrave no futuro. Isso em função de que o governo brasileiro tomou medidas insuficientes para prevenir o desgaste socioeconômico a longo prazo. Segundo Guilherme, no caso do Governo Federal, uma das principais problemáticas acerca da gestão da pandemia se encontra na visão macroeconômica: “Grosso modo, as variáveis principais que influenciam na produção de uma economia, ou seja, na produção de bens e serviços na indústria, comércio, etc., são o trabalho, o capital e a tecnologia. Assim, se há um lockdown, haverá, também, uma queda na produção e, por sua vez, na economia. Tanto que em todo o mundo houve uma redução do nível de crescimento. Todavia, se o governo realmente se preocupasse com a economia do país, eles teriam feito uma política de combate à covid mais afirmativa”.

Segundo explica o economista, atualmente, cerca de 25,6% das mortes por covid-19, são de pessoas com 60 anos ou menos. Cerca de um pouco mais de 5% são de pessoas com menos de 40 anos. Nesse cenário, “se a oferta de bens e serviços depende do trabalho, quer dizer que 25,6% de 282.000 pessoas deixarão de produzir por no mínimo cinco anos (tomando por medida a idade mínima para se aposentar). Isso impacta fortemente na produtividade da economia. Sem contar os gastos públicos que vão se tornando cada vez maiores com auxílios, UTIs, pagamento de servidores públicos que estão trabalhando em home office, mas com a produtividade menor do que o trabalho presencial, entre outras coisas”.

 

Como consequência, aponta Guilherme: “O impacto disso está descrito no PIB de 2020. Queda de 4,1%. Isso poderia ter sido minimizado. Vidas poderiam ter sido salvas. Esse discurso de manter a economia aberta durante a pandemia, só piora o quadro macroeconômico do país e gera perdas de vidas, de nós brasileiros."

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Fonte: Arquivo pessoal

O economista, Guilherme Barbosa, 22, destacou as problemáticas da gestão da pandemia

Foto: Lincon Zarbietti

O estado e a cidade de São Paulo presenciam uma escalada no número de casos e mortes por Covid-19, por isso o cemitério de Vila Formosa, o maior da América Latina, estende os horários de sepultamento para o período noturno devido à alta demanda causada pelas mortes de Covid-19.

Auxílio insuficiente e suas consequências

O despreparo estrutural à adaptação ao cenário pandêmico e às novas modalidades de trabalho contribuiu para o fechamento de pequenas e médias empresas, e para o registro da taxa mais alta de desemprego no país desde 2012, o início da série histórica. A Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios (Pnad Contínua) registrou 14,9% de brasileiros desempregados no quarto trimestre de 2020. O mês de novembro foi encerrado com 13,9% de pessoas sem ocupação no país.

O advogado Rafael Mirra afirma que, ao contrário das grandes empresas, as pequenas, médias e os microempresários não possuem os recursos necessários para implementar adaptações em seus sistemas, estando sujeitos a prejuízos que podem ser fatais. Além desses obstáculos, a execução dos lockdowns está sendo feita de forma desorganizada, comprometendo anos de desenvolvimento econômico para o Brasil. "Nenhuma legislação no mundo estava preparada para o que aconteceu agora", afirma Rafael.

Nenhuma legislação no mundo estava preparada para o que aconteceu agora

Rafael Mirra

Advogado

O Projeto de Lei nº 1066, de 2020, foi uma das primeiras medidas tomadas pelo Governo Federal para lidar com a realidade pandêmica, instituindo o auxílio emergencial para trabalhadores informais, microempreendedores individuais que integrem famílias de baixa renda, desempregados e membros de famílias de baixa renda inscritos no CadÚnico, incluindo os beneficiários do Programa Bolsa Família. 

De acordo com a Controladoria Geral da União (CGU), foram contemplados mais de 53,9 milhões de beneficiários em 2020. Ainda nesse primeiro momento de recebimento do auxílio, que durou até dezembro, a CGU identificou mais de 160 mil possíveis fraudes no recebimento, praticadas por empresários, funcionários públicos e brasileiros morando no exterior. Em 2021, o auxílio foi prorrogado por mais quatro rodadas, mas com diminuição dos valores, e beneficiará cerca de 45,6 milhões de brasileiros, número menor do que o do ano anterior. 

A Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) publicou, em abril de 2021, uma previsão de que o auxílio emergencial deste ano deve auxiliar o setor oito vezes menos que em 2020, principalmente pela redução do valor, mas também pelo comprometimento da renda familiar da população. As estatísticas do Banco Central mostram que o comprometimento da renda das famílias (valores esperados para o pagamento de dívidas no orçamento familiar) que em dezembro de 2020 era cerca de 28,4%, aumentou ao longo do primeiro trimestre de 2021, atingindo 30,3% da renda familiar no mês de março. 

Além dos problemas de ordem material, os brasileiros tiveram que se adaptar bruscamente à nova realidade. Esse esforço provocou consequências emocionais. O gerente de lojas e empreendedor Gabriel Andrade, 27, lamenta: "A pandemia virou a minha vida de cabeça para baixo”. Após fechar a sua fototica, em Itabira (MG), sob decreto de lockdown e se voltar ao serviço de delivery, confeitaria e criação de aves, ele está trabalhando três vezes mais e não consegue a renda que tinha antes. “Tem que ter psicológico para aguentar, chega uma hora que cansa". Ele relata ter tido crises de ansiedade, perda de apetite, não tem conseguido socializar e, devido às preocupações, não consegue dormir.  

Infográfico de Comparação do Poder de Co

Em São Carlos, no interior de São Paulo, Ana Laura Bertolo, 21, estudante de pedagogia e professora, conta que, ao descobrir a gravidez no início da pandemia, precisou procurar, junto de seu companheiro, fontes de renda de retorno imediato. Assim, eles decidiram criar um negócio para vender salgados caseiros. A rotina dura, falta de lazer, solidão, somadas às próprias demandas da gravidez, resultaram em estresse e exaustão. "Foi puro terror”, desabafa. 

A proximidade do mundo do trabalho com o ambiente doméstico, aliado às incertezas do mercado, agravou o impacto psicoemocional da pandemia. O teletrabalho e o home office, adotados pelas empresas no período da pandemia para evitar o avanço do vírus, não são exatamente sinônimo de conforto e privilégio. Segundo dados da Pnad Contínua do IBGE, ao longo de 2020, a média de pessoas trabalhando remotamente no Brasil se manteve estável em 7,9 milhões. Enquanto isso, foram registradas 2,7 milhões de trabalhadores afastados de suas atividades graças à pandemia, dentre os quais 879 mil deixaram de receber remuneração.

Foto: Pixabay

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O home office vem sobrecarregando os trabalhadores.

João*, 37, mesmo já tendo trabalhado em situação mista de home office e atividades presenciais, começou a apresentar sintomas de depressão e ansiedade alguns meses após ter migrado exclusivamente para home office. Sua tarefa mais difícil é separar o tempo de trabalho e descanso. Ele relata que hoje sua demanda de trabalho é maior e mais cansativa, chegando a 12 horas por dia.

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Fonte: Arquivo pessoal

A psicóloga Kamila Freitas destacou o aumento da busca por tratamento psicoemocional na pandemia

A psicóloga Kamila Freitas salienta que com a pandemia, “aumentou bastante a procura [por tratamento]. [Muitas] pessoas precisaram se adaptar a essa nova rotina de home office, e isso acabou trazendo uma ansiedade, uma carga maior de trabalho e uma cobrança maior de produtividade. Então, a minha área acabou tendo uma valorização ainda maior, eu acho que virou uma coisa quase que necessária [terapia com psicólogo], para conseguir levar esse período de pandemia com pelo menos um pouquinho de saúde mental... dentro do possível”. Segundo ela, seus pacientes se queixam de insônia, medo de não mostrar produtividade, falta de descanso, que foram tomados pelo trabalho e a exigência de disponibilidade a todo o tempo.


As rotinas de trabalho e as exigências mentais, emocionais e físicas provocadas pela pandemia não tiveram miras tão difusas quanto o vírus da covid-19.

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