Deslocamentos
Trabalho digital
Desenvolvimento tecnológico e a alternância nas estruturas de trabalho
Como as novas formas de organização social do trabalho constroem cotidianos alternativos
Texto de Mariana Moschen
Vídeo de André Silveira
Sonora de Rodolfo Simões
As mudanças nos modos de relacionamento interpessoal e nas formas de trabalho são bastante visíveis na sociedade contemporânea, por conta do desenvolvimento das tecnologias inteligentes como a internet, que causam impacto na sociedade e na vida dos indivíduos. Hoje é possível fazer de casa, ou de qualquer lugar do mundo que tenha acesso à rede, trabalhos que algum tempo atrás só poderiam ser feitos no escritório ou na sede de uma empresa.
A pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Naiara do Nascimento, em análise sobre o nomadismo digital e sua relação com a comunicação na era da web 2.0, fala do tema como uma forma alternativa de relacionamento com o trabalho e com o mundo, no qual se desenvolve um modelo de emprego atrelado ao estilo de vida viajante. Ela argumenta que "nômade digital" não se refere a "mochileiros" ou a pessoas que vivem de empregos tradicionais no exterior, mas àqueles que necessitam da internet como meio fundamental das suas atividades de trabalho e da base de gerenciamento de seus negócios.
Segundo o analista de sistemas e trabalhador digital desde 2012 Saulo Vallory, “ser nômade digital não define que tipo de trabalho você vai fazer, exceto a parte que é um trabalho que se faz usando tecnologia. Você pode ser nômade vendendo artesanato e ser nômade vendendo sites ou tirando fotos.” Para Saulo, nômade digital é alguém que usa de tecnologias como a internet para se financiar. “O termo surgiu porque o home office e a digitalização das profissões tornam muito mais fácil virar nômade. Não dá pra ser nômade com um emprego fixo num escritório”, destaca.
Ele diz que iniciou a carreira a partir da ideia do minimalismo. “Comecei a pesquisar tipo de mochila, como eu poderia ter uma viagem confortável mudando a cada três meses para levar minhas coisas comigo. Não dava para fazer mudança, então tinha que ter uma mochila com tudo que era preciso para estar confortável aonde for”. Saulo conta que foi melhorando seu kit de viagem ao longo do tempo, com uma mochila ‘gigante’, cafeteira e moedor pequenos para fazer um café a seu gosto, necessaires específicas de remédio e banho.
Para se preparar para esse trabalho, Saulo narra que começou pedindo demissão e contando para o chefe que queria um trabalho digital. Foi aí que o chefe lhe ofereceu a possibilidade de trabalhar remotamente. “Foi ótimo porque cortou uma etapa complicada de precisar procurar um trabalho remoto. Eu não queria trabalhar como freelancer e ter uma renda incerta, queria trabalhar contratado por uma empresa, saber que tenho uma grana fixa para poder contar todo mês e me planejar dentro disso. Não viajei 'na doida', é importante saber como se sustentar.”
A seguir, Saulo relata sua experiência e sua rotina nesse período em que atua como nômade digital.
O gerente de mídias sociais para esportes Giorgi Khutsishvili trabalhou em escritórios por nove anos. Durante esse tempo, a experiência de trabalho foi muito boa e ele adquiriu conhecimentos importantes, pessoalmente e profissionalmente. Mas Giorgi prefere o trabalho digital e à distância. “Isso me dá mais liberdade e flexibilidade de tempo e posso me mudar para onde eu quiser. Normalmente, não passo oito horas por dia trabalhando. É muito menos. Como também é meu hobby, às vezes não consigo definir se estou fazendo um trabalho ou lendo/escrevendo algo apenas para o meu prazer”, diz.
Giorgi não se preparou para virar nômade. Quando percebeu, já trabalhava digitalmente. “Pedi demissão, e o principal motivo foi ficar entediado e cansado, sentado entre quatro paredes, cinco dias por semana, de 10h às 19h.” Ele afirma que depois de ter pedido demissão em 2015 não tinha nenhum plano em mente, estava aproveitando o tempo livre quando um amigo lhe ofereceu um emprego de Marketing de Mídias Digitais para um canal de TV esportiva. “A melhor coisa sobre a oferta foi que eu sou fã de esportes e o trabalho não exigia estar sentado em um escritório. Então, eu e meu novo trabalho combinamos perfeitamente.” Ele diz às vezes sentir falta de contato com as pessoas em um ambiente de trabalho, de curtir conversas agradáveis e interessantes durante os coffee breaks, mas geralmente compensa isso passando mais tempo com amigos e conhecendo pessoas enquanto viaja ou apenas relaxando em alguns lugares.
Emprego remoto e o excesso de trabalho
O trabalho digital permite flexibilidade nas vivências e atividades cotidianas. É possível viajar e trabalhar ao mesmo tempo, ficar no conforto de casa e dormir mais, descansar ou ter mais tempo para o lazer, já que não é necessário gastar tempo com trânsito para ir até o escritório. Mas também existe a possibilidade de trabalho em excesso, porque não há diferença do ambiente de descanso, além de poder ser executado pelo celular, algo que as pessoas costumeiramente mantêm por perto.
Camilla Quintela, autônoma na internet com uma loja de roupa feminina online e blogueira, afirma que o trabalho digital é totalmente diferente do presencial: “às vezes estou deitada na cama com o celular na mão e ainda assim estou trabalhando. O lado bom é fazer meu horário, poder trabalhar em qualquer lugar. Não preciso estar maquiada ou arrumada todos os dias. O lado ruim é estar sempre trabalhando. Eu pelo menos não tenho folga. Se um cliente pergunta algo eu respondo, não ligo se é domingo ou feriado.” Ela aponta que isso é uma escolha e entra no planejamento. “Atualmente se você demora para responder ou tirar uma dúvida é o tempo do seu cliente comprar em outra loja. Por isso normalmente eu trabalho mais de oito horas por dia.”
Ela diz que fez diversos cursos antes de saber que trabalharia em home office e depois de abrir sua loja online fez algumas especializações como marketing digital, criação de conteúdo para empresas e vendas pelo Instagram. Ela afirma ser “necessário se atualizar sempre, pois na internet as coisas acontecem muito rápido. Se você demorar um pouco para postar algo da ‘moda’, já está atrasado.” Para ela, trabalhar em casa exige muito foco e planejamento, e para quem quer começar a trabalhar dessa forma, deve iniciar com o que tem, “não fica esperando ter o melhor celular, a melhor câmera etc. Hoje eu tenho um equipamento de trabalho bem completo. Mas quando comecei não tinha nem tripé para fazer fotos e vídeos.”
No trabalho digital, foco e planejamento podem ser difíceis no começo para algumas pessoas, e há empresas que usam aplicativos para controlar e saber se o empregado está trabalhando o tempo estipulado. Saulo Vallory explica que conseguiu aprimorar sua disciplina e organização no tempo do trabalho com um controle feito pelo empregador. “A empresa tinha um sistema de trabalho remoto que me monitorava o tempo inteiro. Quando eu começava a trabalhar ligava esse sistema. A cada dez minutos ele tirava uma foto pela webcam. Não podia ter duas fotos seguidas em que eu não estava na minha cadeira. Além disso esse sistema tinha uma espécie de ponto por clique, quando eu começava e quando parava.”
Saulo diz que o sistema contabilizava o número de cliques no mouse e nas teclas. Era um monitoramento de performance que fazia valer a hora que ele marcava como trabalhada. O sistema também tirava print da tela a cada dez minutos e monitorava o tempo gasto em cada programa. “Parece absurdo, um controle surreal. Mas por causa desse monitoramento, que foi difícil para mim no começo, comecei a fazer estritamente as oito horas que tinha que fazer e essas oito horas eram extremamente produtivas.”
Entretanto, para alguns trabalhadores, exercer sua função em casa pode significar uma sobrecarga de serviço além do que seria considerado produtivo para ambas as partes. Renata Bastos, psicóloga do trabalho, ergonomista e doutora em ergonomia e educação, traz alguns pontos frequentes apontados por teletrabalhadores.
Renata ainda afirma que “quem trabalha em casa em um emprego fixo sempre relata que trabalha muito mais do que presencialmente na empresa. Todos consideram que há aumento da carga de trabalho. Quem está em casa não tem a fronteira ‘estou em casa não vou fazer mais nada.’ Não tem mais limite entre o trabalho e a casa, a casa é o serviço então isso fica mais diluído.”
O teletrabalho e as fronteiras entre emprego e lazer
Um outro tipo de home office é o teletrabalho, realizado em instituições públicas e privadas. Segundo o presidente da Sociedade Brasileira de Teletrabalho e Teleatividades (Sobratt), Cléo Carneiro, o teletrabalho existe muito antes de ter sido contemplado na reforma trabalhista de 2017. A lei, porém, deu mais segurança jurídica para as empresas o implementarem. “Aqui no Brasil temos algumas experiências na área pública. O Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro) implantou o teletrabalho em 2005.”
De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o teletrabalho é aquele exercido fora dos escritórios ou das centrais de produção e é baseado numa relação de confiança. O trabalhador não precisa ser vigiado, mas é necessário um acompanhamento do gestor. E para implantar um programa de teletrabalho, é necessário fazer um contrato no qual a jornada de trabalho é a mesma da pessoa que está no escritório. “Não faz sentido a pessoa trabalhar mais só porque está trabalhando em casa. As tarefas precisam ser discutidas e acompanhadas o tempo todo. Num programa bem implantado e com acompanhamento, não existe o risco de a pessoa não trabalhar.”
No teletrabalho, os empregados se conectam com alguns colegas de profissão por meio de tecnologias móveis. Segundo Cléo Carneiro, o processo para implantação do trabalho a distância pode nascer da empresa ou dos trabalhadores; pela lei, não pode ser imposto pelo empregador. A pessoa precisa aceitar trabalhar em casa, de forma voluntária.
O advogado e especialista em Direito do Trabalho e Previdenciário, Adriano Gonçalves, afirma que a lei permite um acordo entre empregado e empregador. “Na flexibilização do trabalho, o mais interessante no caso do home office é que as duas partes tenham um conhecimento mais avançado, para que não haja abuso de uma parte ou de outra.” Segundo ele, pela lei trabalhista, se houver abuso no contrato ele pode ser rescindido. Entre os abusos estão a exigência de algo além do conhecimento ou da força da pessoa.
Um exemplo de algo além do conhecimento da pessoa é o funcionário ser contratado para mandar emails e fechar contrato com fornecedores, e o empregador descobre que esse funcionário estuda direito, e então começa a pedir para ele fazer contestações, petições judiciais, que no caso é um serviço além daquele exigido no contrato.
Segundo o site do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em notícia de abril de 2018, até 30% dos servidores podem trabalhar a distância em cada unidade judiciária. Nesse regime, o servidor deve cumprir a meta estabelecida pelo gestor, o que equivalerá ao cumprimento da jornada de trabalho.
Na opinião do presidente da Sobratt, Cléo Carneiro, o teletrabalho facilita a vida de quem o exerce. “A rigor não existe nada contra o empregado. Os benefícios são a melhoria da qualidade de vida, mais convívio com a família, mais disponibilidade para repouso, uma série de vantagens." Cléo não vê nenhuma desvantagem na modalidade: "a não ser a questão da diminuição do contato com os colegas e com a empresa, que pode ser contornada, não existem questões contra. Os benefícios superam de longe as eventuais desvantagens”.
Já a psicóloga Renata Bastos aponta sérias desvantagens. Além de trabalhar mais do que se estivessem na sede da empresa, “a convivência social se perde, as pessoas ficam muito solitárias. Existe um individualismo que traz prejuízos não só para o trabalho, porque você deixa de aprender com os colegas, deixa de estar em um ambiente que de uma certa forma pode te estimular, provocar, te fazer pensar em coisas novas. Você perde o sentido da luta social por melhores garantias de trabalho.”
Segundo Renata, através do discurso do empreendedorismo, os empregados pensam que são gestores do próprio trabalho, “as pessoas perdem a identificação com a classe trabalhadora, se sentem patrão no próprio trabalho, e na verdade não são patrão. Tem essa confusão identitária. O funcionário sabe que é empregado mas começa a ter um pouco a sensação de que é dono do seu próprio trabalho.” Ela afirma que isso enfraquece a luta das organizações sociais e sindicais em prol dos trabalhadores. O vínculo trabalhista fica mais frágil e o empregado não tem sensação de pertencimento na empresa. A seguir, confira alguns detalhes sobre a precarização dos vínculos trabalhistas.
Conforme a notícia do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), quem trabalha remotamente deve ter uma produtividade mínima superior a 20% em relação aos servidores que continuaram a trabalhar presencialmente nas unidades judiciárias. Segundo Cleo Carneiro, a produtividade maior ocorre pelo número menor de interrupções “devido à natureza do trabalho presencial: reuniões não programadas e outras interrupções." Ele diz que se a pessoa for treinada para trabalhar em casa, as interferências são muito menores, e é importante no trabalho remoto a pessoa se programar para algumas pausas, se alongar. "Pelo fato da pessoa estar em casa, num ambiente mais amistoso, psicologicamente ela tem mais disposição para estar trabalhando, fator que leva ao aumento da produtividade”, opina.
Já a psicóloga Renata traz alguns pontos negativos. Uma pessoa que trabalha presencialmente, das 8h às 18h, chega em casa e não está mais no ambiente de serviço. O teletrabalho não tem essa fronteira, vai além do horário da empresa. E com o WhatsApp, por exemplo, o emprego tange a vida como um todo. “Os supervisores continuam conectados, quem trabalha em turno continua conectado, isso tem produzido uma mobilização que invade a vida completa do trabalhador, ele não tem mais hora de descanso. Isso é uma fala muito recorrente em todos os trabalhadores que fazem uso do WhatsApp e recebem mensagens depois que saem do serviço.” Muitos comentam que a vida social e de lazer encolheram e que hoje têm menos tempo para isso; mesmo que não estejam fazendo alguma coisa, estão preocupados, pensando em algo relacionado ao trabalho. Para Renata, o efeito dessas tecnologias foi tirar o tempo de descanso e de lazer. Isso está invadindo a vida familiar e privada, causando transtorno para filhos e casamentos.