Deslocamentos
Glenn Greenwald
Fake news e poder
“A prioridade agora é pensar por que nós perdemos, como profissão, a credibilidade para que pessoas acreditem no que publicamos”
Texto de Ana Laura Rangel
Vídeo de Ana Miranda e Fabrício Igbó
A discussão sobre o tema das fake news é importante para entender estratégias comunicacionais que marcaram as campanhas eleitorais de 2016 nos Estados Unidos, com Donald Trump, e em 2018 no Brasil, com Jair Bolsonaro. Em conversa com Glenn Greenwald, um dos fundadores do The Intercept Brasil, tratamos sobre alguns pontos que ajudam a esclarecer esse conceito, um dos mais reconhecidos e discutidos pelo jornalismo atualmente. Confira abaixo o vídeo com parte da nossa entrevista, na qual é tratado o tema das fake news sob perspectivas políticas.
A deputada federal Joice Halssemann (PSL-SP) foi convidada no dia 5 deste mês para uma reunião da CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito) das fake news. O depoimento de Joice expôs ataques digitais que a deputada recebeu e disseminações de fake news, feitas com uso de dinheiro público, por parte de um grupo do qual Carlos e Eduardo Bolsonaro participam. A comissão investiga informações mentirosas e distorcidas disseminadas na internet durante as eleições de 2018 e outras práticas prejudiciais, como a violação de direitos humanos.
Para entender mais sobre fake news, também convidamos Rafiza Varão, doutora em Comunicação, professora na Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora no assunto. Segundo a professora, as palavras fake e news têm sentidos completamente opostos e, quando juntos, acabam associando o trabalho jornalístico à produção de mentiras. Durante a entrevista, Rafiza nos ajuda a entender como esse fenômeno atua na internet e como ele pode ser combatido, por exemplo. Confira.
CURINGA Qual o perigo de políticos explorarem a ideia das fake news a seu benefício?
RAFIZA O perigo é aquele que já vimos e estamos vendo: a utilização desse material como peça de propaganda, interferindo no destino político do país com base na ignorância e na propagação de mentiras – o que se configura, por si só, como um ataque à democracia, que deve ser pautada pelo esclarecimento dos cidadãos e o acesso destes à informação transparente e correta.
C Em entrevista para a Curinga, Glenn Greenwald conta que existe um perigo na tentativa de pessoas, principalmente da esquerda, exigirem leis para censurar as fake news na internet. Para você, que perigo é esse?
R O perigo está relacionado ao cerceamento da livre circulação de pensamentos e ideias e à noção mesma de liberdade de expressão. Não acredito que proibir qualquer conteúdo seja viável a priori. Há um conto famoso de Philip K. Dick, chamado “O relatório minoritário”, em que toda a história se dá numa sociedade sem crimes, que passam a ser previstos por entidades chamadas de precogs. Os precogs preveem atividades criminosas antes que estas aconteçam e seus possíveis autores são presos pelo Estado. Chega-se a um ponto em que as prisões estão cheias de inocentes. A ideia pode parecer tentadora, mas leva a um controle sobre indivíduos e pensamentos que pode, no fim das contas, resultar em autoritarismo. Quem pode decidir o que pode ser dito?
C Como a internet influencia na produção de fake news?
R A produção de fake news é facilitada pelas chamadas mídias digitais, uma vez que seus usuários atuam como centros de distribuição e fabricação de informação. Essa informação, hoje, não requer mais um centro emissor profissional, posto que todo usuário, de posse de dispositivos digitais, é ele próprio um centro emissor. Assim, notícias falsas não só são produzidas com facilidade, mas sua circulação também aumenta exponencialmente.
C Glenn também menciona a origem da expressão fake news em 2016, durante a campanha de Trump. Você saberia dizer se há particularidades do uso de fake news aqui na América Latina, por exemplo no Brasil na campanha de Bolsonaro por Whatsapp?
R Uma das particularidades das fake news é justamente essa: o uso de aplicativo criptografado de mensagens como é o Whatsapp, que não é tão popular nos EUA como aqui. O brasileiro adotou o aplicativo como sua rede preferencial para troca de mensagens. Como o acesso a grupos nesse caso se dá por afinidade ou proximidade, as bolhas se tornam lugares por excelência de compartilhamento de notícias falsas. Elas reforçam as crenças desses grupos e fortalecem os vínculos de afinidade entre seus membros. Um prato cheio para políticos mal intencionados no nosso país.
C Há possibilidade da CPMI das fake news ter algum resultado positivo no combate a essas notícias? Como a comissão é importante para esse combate?
R Em primeiro lugar, não podemos chamar fake news de notícias. O termo é um oxímoro, uma palavra com origem nas teorias da retórica, que indica que estamos falando de sentidos completamente opostos. Ou seja, a ideia de fake news é de que não se trata de material noticioso, mas qualquer outra coisa. No que que tange à CPMI das fake news, seu impacto pode ser positivo no sentido de coibir, ainda que apenas em parte, a propagação desse tipo de material, penalizando aqueles que o propagarem ou o produzirem. As fake news existiram sob outras designações e formatos no passado e continuarão a existir no futuro. Mas a existência delas é menos importante do que aquilo que faremos com elas.
C O tom alarmista e conspiratório nas notícias pode ser um tipo de desinformação? Como esse tipo de notícia viria na contramão da informação?
R O tom alarmista e conspiratório sempre pode ser, no fundo ou na superfície, desinformação. Entretanto, causar alarme pode ser uma das consequências de um determinado acontecimento, independente das más intenções de quem produz uma notícia. Se uma barragem está prestes a se romper, por exemplo, mesmo que o jornalista não queira, esse tipo de informação causará alarme. O problema é a distorção de informação, que foge àquilo que caracterizaríamos como notícia.
C A produção de narrativas que distorcem fatos ou que são totalmente fakes podem ser combatidas pelo próprio jornalismo tradicional? Levando em conta que esse jornalismo está passando por um momento de descrédito.
R O jornalismo tradicional não é suficiente para modificar a relação da população com as fake news, mas é uma importante antípoda para esse fenômeno, trabalhando com informação e não com desinformação. Nesse sentido, cabe ao jornalismo reforçar em si mesmo valores como correta apuração e compromisso com a verdade. O descrédito da imprensa não é algo recente, embora possa estar sendo mais estimulado agora do que em períodos próximos ao que estamos vivendo. Isso nunca evitou que parte da população confiasse nos veículos jornalísticos e em jornalistas que construíram para si próprios um histórico de credibilidade.